sexta-feira, 12 de setembro de 2014

Dilma Rousseff versus Marina Silva

Entre Dilma e Marina existe a ponte do inconformismo social. A separá-las, há mais que um oceano de diferenças.

Por David Paiva*

Qual a diferença essencial entre essas duas senhoras? Afora as evidências, peso, cor da pele, tom de voz e altura do penteado, o que as distingue de fato? Até pouco tempo, integravam o mesmo ministério Lula. A militância política começou para elas em épocas e circunstâncias muito diferentes, mas não há dúvida de que leram livros e adotaram ideias em comum.  Além disso, foram próximas a líderes que se respeitavam e se admiravam mutuamente – Dilma foi brizolista e Marina descobriu a política com Chico Mendes.

Dilma nasceu em Belo Horizonte e cresceu nas imediações da Praça da Savassi, no tempo em que o bairro era um nicho residencial da classe média tradicional. A maioria das casas, da época da fundação da cidade, eram belos casarões construídos para abrigar famílias de funcionários transferidos de Outro Preto na mudança da capital.  Difícil encontrar reduto mais civilizado e ao mesmo tempo mais conservador e udenista.

Marina nasceu numa comunidade conhecida como Breu Velho, de habitações de palafitas, no Seringal Bagaço, perto de Rio Branco. De ancestrais índios e portugueses, miscigenação banal nas raízes do Brasil, tudo em Marina é banal – a pobreza, a mãe morta (tanta era a falta de recursos) quando a menina tinha 15 anos, a alfabetização tardia pelo antigo Mobral, o emprego de doméstica na casa de dona Teresinha.  Só não é banal o rumo que esse intrincado de obstáculos tomou na vida de Marina.

Dilma Rousseff, depois de fazer o curso primário em educandário particular e religioso, o Colégio Sion (hoje Santa Doroteia), foi estudar no Colégio Estadual Central, o melhor de Minas. Marina Silva alfabetizou-se na adolescência porque queria ser religiosa. Sem esse sonho, talvez nem estudasse. Mas a menina não chegou a ser freira; em vez disso, conheceu a causa da defesa da floresta, aproximou-se da militância de Chico Mendes, ajudou a fundar a seção local da CUT e filiou-se ao Partido Revolucionário Comunista, uma das correntes do PT.

A moça do Colégio Estadual, antes de concluir os estudos, também deu uma guinada: abriu mão dos confortos de menina bem-nascida e, cheia de ideias políticas, entrou para a guerrilha urbana. Não há registro de que tenha participado de ações armadas, e ela própria afirma que jamais participou. Mas isso não a livrou de ser presa e torturada.

Entre Dilma e Marina existe a ponte do inconformismo social, o marxismo revolucionário e a determinação de botar a mão na massa. A separá-las, há mais que um oceano de diferenças. Entre o mundo seringueiro de Marina e as meninas do Colégio Estadual são anos-luz de distância. Quando Orwell descreve, em O caminho para Wigan Pier, a rejeição da classe média a um trabalhador das minas de carvão porque ele fede (mesmo admitindo como comovente seu sofrimento), é dessa distância que está falando.

Estranhamente, os mundos de Dilma e Marina cruzaram-se no espaço. Trocaram de lugar, na perspectiva da classe média. A menina que de madrugada comia banana com ovo e depois ia recolher látex nas seringueiras, tomou uma direção e aprendeu a falar um idioma e a pensar umas tantas coisas que a aproximaram do grupo social que agora circula pelos shoppings, cafés e livrarias da região da Savassi.

Já a moça do Estadual partiu em direção oposta. Não porque entrou na luta armada, que isso virou credencial chique, mas porque integra um partido que se apoia no trabalhador, nas suas formas de organização, nas suas expectativas ainda pequenas e ditadas por necessidades elementares, básicas e urgentes. Em palavras que poderiam ser delas próprias, garimpadas em discursos: enquanto Dilma socorre pobres, Marina estimula sonhadores.

Foi assim que Marina ocupou o lugar de Dilma na admiração da classe média. Saindo do seringal, Marina adaptou-se à academia, tornou-se uma tese, uma intelectual, uma elegante mulher “que sonha”. Dilma, a menina do Colégio Sion, faz política terra-a-terra; a bordo de um partido tosco de trabalhadores tenta içar do fundo do Brasil real a nossa versão dos mineiros de Orwell, gente que eventualmente fede.  Como explica Emília Viotti da Costa, historiadora do Brasil escravocrata, somos herdeiros de uma visão do trabalho como algo “degradante”.
*David Paiva cursou História na UFMG, foi redator publicitário e é autor do livro “Memórias dos ‘abitantes’ de Paris”.

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