domingo, 7 de setembro de 2014

Não precisamos de uma ONU das religiões


Precisamos, sim, de reaprender a arte da escuta e do respeito ao outro.
Por Enzo Bianchi*

Realmente é necessária uma ONU das religiões? Talvez apoiada por uma Carta das Religiões Unidas? Os termos com que resume a proposta de Shimon Peres ao papa Francisco certamente são de efeito midiático, mas estamos convencidos de que sabemos exatamente do que se está falando? Estamos de acordo com a interpretação a ser dada a essas palavras e a essa proposta?

Ninguém duvida da sincera intenção de paz que anima a iniciativa assumida pelo ex-presidente israelense, mas não podemos nos eximir de nos interrogarmos sobre as motivações que ele dá a ela e sobre as leituras que daí podem derivar.

Se, de fato, o motivo principal – como parece que se pode entender a partir das palavras com que foi apresentada a proposta de Peres – é o fracasso da ONU, da sua Carta fundadora e, implicitamente, da Declaração Universal dos Direitos Humanos, não se vê como uma nova estrutura, de composição religiosa e não estatal, e uma nova declaração de princípios, confessionais ou não de ética universal, possam obter sucesso onde consideramos que fracassaram os melhores recursos que a humanidade soube investir no rescaldo da Segunda Guerra Mundial.

Talvez as afirmações éticas da Carta das Nações Unidas ou os direitos fundamentais de todo ser humano, sancionados em 1948, são considerados como não mais válidos? Ou, ao contrário, não está em discussão a incapacidade de colocá-los em prática e a falta de vontade para fazer com que sejam respeitados?

E, se faltam recursos e instrumentos coercitivos para impor tais valores e para parar aqueles que os inculcam, realmente acreditamos que um apelo em que a linguagem religiosa substitui a diplomática pode obter sucesso? Além disso, com que base consideramos que aqueles que não aderem a nenhuma religião é desprovido de reivindicações éticas?

Mas há uma leitura mais imediata dessa iniciativa, aquela que imediatamente provoca a ênfase por parte das mídias: um hipotético novo órgão mundial poderia estabelecer uma espécie de mínimo denominador comum das fés, daquilo que é permitido e proibido no âmbito ético segundo os ditames das diversas crenças religiosas.

Ora, nessa ótica, não se pode evitar a impressão de um achatamento sincretista, de um apagamento da revelação em uma nebulosa em que todas as verdades se equivalem, e cada profissão de fé é vítima da "indiferença".

Certamente, é mais fácil investir uma entidade inter-religiosa hoje inexistente – e dificilmente realizável – das responsabilidades que o concerto das nações não soube enfrentar dignamente, em vez de chamar novamente aos seus deveres éticos e civis as nações e os seus governantes, a política e a ética pública.

Talvez hoje aqueles que têm as alavancas do poder político e econômico ignoram o que é bom e o que é mau para a humanidade? Estão realmente esperando ansiosos que as religiões do mundo lhes deem sugestões a respeito? Ou, ao invés, não é verdade que ignoram conscientemente essa clara distinção com base nos seus próprios interesses?

A perspectiva mudaria se a iniciativa visasse a encontrar modalidades e espaços para garantir continuidade e regularidade no debate entre as religiões sobre temáticas éticas, se os responsáveis das diversas confissões de fé pudessem dialogar entre si e se ajudar reciprocamente na transmissão aos seus fiéis e no testemunho aos pertencentes às outras fés os princípios fundamentais do próprio credo, se tivessem um âmbito de autoridade e compartilhado para se manifestar as próprias convicções e encontrar estímulo, conforto e enriquecimento para conhecer em profundidade as convicções do outro.

Então, se trataria de um espaço em que ocorreria, na franqueza e no respeito, o reconhecimento da dignidade humana e ética do crente pertencente a outra religião, assim como da pessoa que não leva em consideração o fato de se referir a um âmbito de fé para normatizar a própria vida e a sua própria relação com o mundo. Assim como mudaria a perspectiva se levássemos mais a sério a dimensão da oração como componente da história, cujos efeitos na vida dos povos e das pessoas nunca podem ser medidos no imediato.

Como destacou o Papa Francisco depois do encontro de oração pela paz no Oriente Médio, trata-se de "abrir uma porta" e de não deixar mais que se feche: uma porta aberta também graças aos nossos esforços, mas uma porta que só permanece como tal graças Àquele que é maior e que, em resposta à nossa oração, converte o coração humano e o dilata à dimensão do seu amor misericordioso e compassivo.

Não precisamos de uma ONU das religiões, mas sim de reaprender a arte da escuta, do respeito pelo outro, do diálogo cordial, do reconhecimento da qualidade humana e espiritual tanto de quem encontramos nas nossas existências, quanto de quem gostaríamos de evitar de encontrar para não sermos chamados novamente às nossas responsabilidades pessoais e coletivas.
La Stampa, 05-09-2014.
*Enzo Bianchi é monge, teólogo, prior e fundador da Comunidade de Bose. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Nenhum comentário:

Postar um comentário