terça-feira, 9 de setembro de 2014

O homem íntegro

'Um homem só fica grande quando circula na presença de grandes momentos de integridade', foram suas palavras.

Por Lev Chaim*

Por volta das 8h30min, quando retornava da caminhada com o Pitú - meu cão-, via-o quase sempre levando a filha de quatro aninhos à escola. Ele a pé e ela de bicicleta, toda serelepe, contente de já estar circulando sem as rodinhas extras que a mantinham em equilíbrio. Mas, neste dia, eu o vi, em cima de uma escada, podando a roseira junto ao muro de sua casa.

É um homem atípico: magro, 1,78 metros mais ou menos, cabelos loiros curtos, de óculos de aro dourado fino, com ar de intelectual. Seus gestos, sua maneira de saudar as pessoas e a voz sempre no mesmo tom indicavam qualidades inusitadas para os dias de hoje: integridade. Ele se chama Hector.

Depois de ter rodado o mundo, já não endeuso as pessoas, mas sempre noto as que fogem à regra. Esse meu vizinho de quarteirão já entrou para a minha lista que, desde a infância e juventude, elaboro. Ali estão aquelas com o máximo de estrelas possíveis. Eram todas abertamente íntegras, segundo o meu modo de ver as coisas, tal qual uma noite brilhante de lua cheia.

Alguém que visse Hector caminhando pelas ruas, jamais imaginaria os seus problemas. Neste exato momento em que tento escrever este retrato, sua filhinha recém nascida, prematura, de sete meses, está na U.T.I. de um hospital holandês, entre a vida e a morte. Ela já sofreu várias operações. Sua esposa fica direto no hospital e ele com a filha mais velha, em casa.

Nos finais de semana, eles se juntam no hospital; coisa que já vem ocorrendo desde o nascimento da pequena, há cerca de dois meses. Ele me contou isto um dia, quando lhe perguntei como estava. Há dias que já havia notado um certo cansaço em seus olhos azuis, esfumaçados.     

Em cima da escada, ele tentava pegar um galho da roseira para cortar as rosas já secas. Era quase outono, mas a roseira ainda estava linda e serena. Rosas amarelas. Pareciam com ele. Ao me aproximar, Hector já vinha descendo com a missão cumprida: as rosas boas ficaram e as secas rolaram para o chão.  

Repeti a mesma pergunta do outro dia e ele respondeu: “Indo”. Fiquei assustado. Para Hector dizer aquilo, algo teria ocorrido. Depois de algum silêncio, ele acrescentou: “Fomos ontem ao enterro de minha sogra, de 69 anos, que faleceu de repente; preocupo-me muito com a minha esposa.”

Por alguns segundos fiquei sem ação: a filha doente e agora a sogra morta. De uma maneira ou de outra, captei a sua dor. “Se estiver se sentido só, venha comer lá em casa com a filha”. Ele agradeceu, mas recusou. Pediu desculpas, dirigiu-se à porta da casa. Foi ai que me bateu um clique: “Lev, com uma dor tão grande assim, ninguém pode ficar só.”

Segui-o e disse: “Hector, vamos tomar um café, aqui, em sua casa.” Surpreso, ele aquiesceu com um leve gesto de cabeça. Foi o melhor café que tomei na vida, a melhor ação que a minha intuição me alertou para fazer. Ali, na mesa da cozinha, ele abriu o coração.

Contou-me que havia lido um artigo que o havia deixado muito triste. Era de autoria de um historiador alemão que mencionava que, na época dos nazistas, cerca de 200 mil crianças e adultos foram mortos, simplesmente pelo fato de terem algum problema físico ou mental. Foram considerados inúteis para a sociedade, segundo os nazistas. “Naquele tempo, a minha pequena seria morta; o mundo era cruel e continua cruel” – disse Hector baixinho.  

“Mas nunca a crueldade foi tão exposta como agora” - pensei baixinho. Foi ai que algo estalou em minha cabeça. Isto, simplesmente, pelo fato de ter tomado um tempinho do meu tempo para conversar com aquele vizinho. Recordei-me do que o meu pai sempre dizia: “Ter amigos de verdade era importantíssimo, eles valem ouro”.

E lembrei-me também do comentário feito por meu pai sobre a minha lista de pessoas íntegras. Era uma lista com apenas nomes de homens: meu pai, o senhor Clóvis Ribeiro, do Laboratório; o doutor Jarbas Spinelli, pediatra; o doutor João Marciano de Almeida, marido da dona Dolores – amiga de minha mãe; doutor Abrão Brickmann, vizinho dos meus pais, entre outros. Meu pai, pensativo, retrucou: “Filho, também existem mulheres íntegras”.

A minha resposta o deixou pasmo: “Só conheço algumas - a mamãe, a tia Sinhá, dona Lourdes e mais algumas.”  Foi ai que ele comentou que o meu mundo ainda estava muito pequeno. “Um homem só fica grande quando circula na presença de grandes momentos de integridade” – foram as suas palavras.

Neste dia, naquela conversa com o Hector, descobri o que o meu pai queria dizer. Muitas vezes a aparência não mostra o íntimo das pessoas. Somente quando se age de forma íntegra, é que você consegue realmente ver a integridade dos que estão ao seu redor. A integridade não está na cara, mas no coração e, nos dias de hoje, ela tornou-se uma coisa rara.
*Lev Chaim é jornalista, colunista, publicista da FalaBrasil e trabalhou 20 anos para a Radio Internacional da Holanda, país onde mora até hoje. Ele escreve todas as terça-feiras para o Dom Total.

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