sexta-feira, 7 de novembro de 2014

Aquela manhã no Paraíso

07/11/2014  |  domtotal.com

Em reunião com seus assessores, Deus é informado de que a criação do homem não saiu como planejado

Por Fernando Fabbrini*

A grande mesa estava montada na Excelsa Nuvem das Reuniões, com as cadeiras dispostas na rigorosa ordem hierárquica celestial. Ali estavam os Anjos, os Arcanjos, os Principados, as Virtudes, as Potências, as Dominações, os Tronos, os Querubins e os Serafins – estes últimos tão íntimos do Senhor que podiam freqüentar o Paraíso até nos domingos, dia em que Ele descansava e não gostava de visitas. O Senhor chegou com o atraso habitual de vinte minutos. Todos sabiam que Deus tardava, mas não faltava. 

- Tudo pronto? Vamos começar?

- Sim, Senhor, seja louvado! – disse o Anjo do Marketing.

Deus contemplou-o com certa impaciência. Arre! Havia alguma coisa que o incomodava profundamente naquele Anjo. Seriam as asas exóticas, de design italiano? Ou a mania de contar piadinhas infames sobre Lúcifer?

- Preparamos uma apresentação em Power-Point...

Deus remexeu-se na cadeira. Detestava modernidades. Gostava, sim, da argila sólida e palpável com a qual tinha moldado Adão e Eva; admirava as águas do Mar Vermelho, poderosas, que ele abrira para Moisés passar. Apreciava material impresso, preto-no-branco, como a bíblia de Gutenberg. Aquilo sim era um bom relatório. Que saudades das Tábuas da Lei, esculpidas em granito! Porém, eram novos tempos. Resignou-se, ligeiramente amuado.

- Bem, temos boas notícias e outras más... – iniciou o Anjo dos Recursos Humanos, com um sorriso amarelo.

- Vamos logo a elas – devolveu-lhe o Senhor, alisando a divina barba.

- Realmente, o Balanço está indicando que a ideia de criar o Homem... Não saiu como planejado...

Um silêncio pesado tomou conta da sala. Aquilo era um tabu, um assunto no qual ninguém gostava de tocar. Todos se recordavam daquele dia terrível. Era a véspera do lançamento do Homem e o consenso permanecia complicado. Criamos ou não criamos? – era a dúvida. Sábado vinha chegando e Deus estava estressado. Não era para menos: tinha passado a semana inteira criando, criando. Montanhas e vulcões. Desertos e geleiras. O ajuste final das placas tectônicas, complicadíssimo. Os Andes, os Alpes, os Himalaias e a Grande Barreira de Corais. Sistemas solares inteiros. Exausto, já cometia erros motivados pela sobrecarga de trabalho, como o caso do ornitorrinco e o das plantas carnívoras.

A apresentação prosseguiu. Na tela sucediam-se imagens aterradoras. Guerras. Miséria. Destruição. Fome. Injustiça. Abusos. Intolerância. Homens matando outros homens em nome de Deus. Homens enriquecendo-se com o dinheiro de ignorantes, também em nome de Deus. Closes de motosserras na Amazônia, derrubando árvores seculares. Políticos nadando num mar negro de corrupção, mentiras deslavadas e safadezas.

Ah! A onisciência divina não se enganara. Como Ele temia, ali estava o resultado de algo que lhe trouxera ansiedade desde o início. Deus esperou pacientemente que a apresentação terminasse, girando nos dedos uma pena desprendida de alguma asa. Absorto, olhava para o Infinito. Aí, desligaram o projetor e a luz se fez. Então Ele falou, pausadamente:

- “De mil passará, a dois mil não chegará...” Lembram-se? Era a minha proposta inicial, porém fui voto vencido. E agora?
Silêncio geral. Ouvia-se apenas um suave farfalhar de asas.

 - A verdade é que muita coisa esquisita aconteceu nos últimos anos – ponderou o Anjo da Tolerância, quebrando o gelo.

- Sem falar no aumento absurdo de seitas que faturam tudo, utilizando o Vosso Santo Nome sem pagar merchandising!

- De nossa parte, fazemos o possível e o impossível. Mas não está sendo mole – disse lá do fundo, da última cadeira, o representante dos Anjos da Guarda, com a voz embargada.

Deus concordou, balançando a cabeça gravemente. Tinha um carinho especial pelos Anjos da Guarda, trabalhadores dedicados. Sempre atarefados, quase nunca tinham tempo para comparecer às reuniões. Quantos séculos já haviam passado? Há quanto tempo o Homem existia sobre a Terra? Deus não se lembrava mais. Calou-se e olhou para as estrelas que brilhavam no céu azul marinho. A reunião terminara.

Enquanto os Anjos ajuntavam papéis e se preparavam para ir embora, Ele fez seu próprio balanço. O seu mundofuncionara bem. As plantas absorveram gás carbônico e produziram oxigênio, como havia pensado. Os animais devoraram-se uns aos outros - mas só quando sentiam fome. Nenhum bicho possuía duas casas e todos trabalhavam honestamente pelo alimento diário. A sombra da grande árvore permitia que a pequena semente germinasse. O excremento das aves fecundava o solo. As chuvas caíam na hora certa, nutrindo o chão. As quatro estações mostravam que tudo estava em constante movimento, convidando ao desprendimento e à generosidade. Havia trocas, permutas, parcerias, ordem – enfim, havia harmonia no seu mundo original. Tudo certo - até a chegada do predador.

Os Serafins perceberam que Deus estava triste. Tentaram consolá-lo:

- Deixa estar, Senhor. Não vos culpeis pelo equívoco. Afinal, foi a primeira vez que criastes o Homem, ora!

Deus virou-se de costas. Alguns o ouviram sussurrar:

- Primeira e última! – e desapareceu na Eternidade, com um sopro de vento.

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