quarta-feira, 21 de janeiro de 2015

O inimigo invisível

Na bagunça que se criou, os únicos que conseguiram o que pretendiam foram os terroristas.

Por Alexandre Kawakami*

O atentado à sede da revista Charlie Hebdo veio mais uma vez desafiar as relações entre a cultura islâmica e o resto do mundo. Mas talvez mais importante do que isso, veio também desafiar a forma como reagimos a este tipo de violência.

De um lado, levantaram-se os que acham que a liberdade de expressão é absoluta. O time do Je-suis-Charlie, ou JSC Futebol Clube. Em contraposição, vieram os que acreditam que a natureza ofensiva dos cartuns da revista justificava, pelo menos até certo ponto, a existência do atentado. O time do Je-ne-c’est-pas-Charlie, ou o Jenepacê Esporte Clube.

Surpreendentemente, jogando no Jenepacê estavam, dentre outros, o nosso Papa e a nossa esquerda. O Papa, o primeiro a ter por obrigação intrínseca repudiar qualquer ato de natureza terrorista, estava na turma do deixa-disso. Junto com ele, os oprimidos de nossa ditadura militar, maiores vítimas do controle da comunicação. Unidos, rezavam o mantra dos limites da liberdade de expressão.

Ironicamente, na zaga do JSC apareceram todos aqueles que defendem uma intervenção ainda maior do aparelho de vigilância estatal para restringir e vigiar, novamente, a liberdade de expressão. Representante maior, mas não único, era o primeiro ministro inglês David Cameron o qual, após o atentado, pôs a propor a proibição do whatsapp e outros aplicativos com criptografia de mensagens: seriam alegadamente ferramentas do terrorismo islâmico. Se a turma do Jenepacê pedia limites à liberdade, a turma do JSC já as entregava por outros caminhos.

Sinal de nossos tempos a cegueira dos nossos debates. Pois no campo dos dois times, só se pensa em duas categorias: as dos direitos e a do revide. Pensa-se apenas num direito à liberdade de expressão, quando esta na verdade é muito mais do que um direito: é uma condição da vida espiritual e intelectual de todos os indivíduos. Definir tal liberdade como direito já é coloca-la num pote, numa focinheira. É como definir o direito à vida, como se houvessem situações onde tal direito deixa de existir. Infelizmente, nessa era de relatividade moral, o assassinato chancelado pelo arcabouço jurídico já não causa arrepios.

Mas fato é que propor qualquer restrição à liberdade de expressão é cerceá-la. Se aceitamos este cerceamento ou não é o ponto do debate. Toda esta discussão seria logo vista como inócua, entretanto, se tivéssemos ainda em nossas vidas o devido respeito à dimensão moral do indivíduo. Numa sociedade em que o que se procura é a harmonia na convivência entre as pessoas, todos os comprometidos com esta noção sabem que tudo posso, mas nem tudo me convém.

Assim, ao ver os cartuns de Charlie, gente com um pouco de noção daria àqueles quadrinhos a crítica que, a meu ver, merecem: o desdém de quem não se impressiona com humor chulo de gente desrespeitosa. Sem precisar dar um tiro sequer, sem em momento algum questionar se há direitos a serem repelidos ou não.

Na bagunça que se criou em torno do atentado, os únicos que conseguiram o que pretendiam foram os terroristas. De agora em diante, nossas revistas vão pensar duas vezes antes de publicar as tirinhas. Mas mais do que isso, chamaram atenção para desenhos que inevitavelmente vão ofender e antagonizar jovens impressionáveis, buscando o sentido de suas vidas no chamado às armas do fundamentalismo islâmico. Os terroristas precisam de pessoas. Para eles, jovens recrutas não passam de recurso renovável.

E vendo o aumento nas fileiras do ISIS e da Al Qaeda, o mundo ocidental se arma e se justifica num revide que invariavelmente produzirá mais terroristas, menos liberdade e mais sangue.

Resgatar a dimensão moral do indivíduo é o primeiro passo na direção da manutenção de nossas liberdades.
*Alexandre Kawakami é Mestre em Direito Econômico Internacional pela Universidade Nacional de Chiba, Japão. Agraciado com o Prêmio Friedrich Hayek de Ensaios da Mont Pelerin Society, em Tóquio, por pesquisa no tema Escolhas Públicas e Livre Comércio. É advogado e consultor em Finanças Corporativas.

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