algumas das suas propostas teóricas, mas também políticas.Do Paulo Jorge Vieira
Teoria do gênero: Judith Butler responde aos seus críticos
Negação dos sexos e dos corpos, desconfiança política, obsessão da dominação: a pioneira do “gênero” fala acerca das preocupações, das tensões que sua linha de reflexão suscita na França
Le Nouvel Observateur – Em 1990, você publicou “Problemas de gênero” que marcou a irrupção do debate intelectual da teoria do gênero. Trata-se de quê?
Judith Butler – Eu quero esclarecer desde já que eu não inventei os estudos de gênero. A noção de gênero é utilizada desde 1960 nos EUA em sociologia e antropologia. Na França, notadamente com a influência de Levi-strauss, durante muito tempo se preferiu falar das diferenças sexuais. Nos anos 1980 e 1990, o encontro da tradição antropológica americana e do estruturalismo francês deu origem à teoria do gênero.
Le Nouvel Observateur – Essa teoria é, às vezes, percebida como uma forma de dizer que as diferenças sexuais não existem…
Judith Butler – Acredita-se que a definição do sexo biológico é uma evidência. Na realidade, ela sempre foi objeto de controvérsias entre os cientistas. Perguntam-me frequentemente se eu admito a existência do sexo biológico. Implicitamente, dizem “realmente, tem que ser louco para dizer que isso não existe”. E, é verdade, o sexo biológico existe. Ele não é uma ficção, nem uma mentira, nem uma ilusão. Simplesmente, sua definição necessita de uma linguagem e de um contexto téorico – aspectos que por princípio podem ser contestados e que o são. Nós nunca temos uma relação simples, transparente, inegável com o sexo biológico (inegável no sentido de certa, conforme). Nós temos que passar pelo âmbito discursivo, e é esse processo que interessa à teoria do gênero.
Le Nouvel Observateur – Os gêneros são também as normas que você critica.
Judith Butler – Os estudos de gênero não descrevem a realidade do que vivemos, mas as normas heterossexuais que pesam em nós. Nós as recebemos pelas mídias, pelos filmes ou através de nossos pais, nós as perpetuamos através de nossos fantasmas e nossas escolhas de vida. As normas nos dizem o que devemos fazer para ser um homem ou uma mulher. Nós devemos a todo instante negociar com elas. Alguns de nós as adoram e as incarnam apaixonadamente. Outros as rejeitam. Alguns detestam mas se conformam. Outros brincam da ambivalência… Eu me interesso pela distância entre essas normas e as diferentes formas de responder a ela.
Le Nouvel Observateur – Não há então uma natureza masculina e feminina? Nunca podemos dizer “eu, como homem” ou “eu, como mulher”?
Judith Butler – Pode ser que exista uma natureza feminina, porém como conhecê-la? E como defini-la? Agora, mesmo que comecemos a falar sobre isso, nós devemos argumentar, defender nosso ponto de vista: o gênero é sempre objeto de discussão politica e nunca uma evidência dada pela natureza.
Certo, eu posso falar como mulher. Por exemplo, eu posso dizer que sendo mulher eu combato as discriminações que pesam sobre as mulheres. Tal fórmula tem um efeito político incontestável. Contudo, será que ela descreve o que eu sou? Estou eu toda inteira contida nessa palavra “mulher”? E será que todas as mulheres estão representadas por esse termo quando eu o utilizo para mim?
Le Nouvel Observateur – Suas obras se inscrevem numa tendência da corrente americana que se interessa pelas vítimas da dominação, as mulheres, os homossexuais, pelos estudos de gênero, as minorias raciais pelos estudos pós-coloniais, as pessoas vulneráveis pela teoria do care. Assim, há um adversário comum: o macho branco hétero e rico. Sua reflexão se aplica a ele também?
Judith Butler – Como todo mundo, o macho branco hétero rico é objeto de várias demandas as quais ele deve se conformar. Viver sua heterossexualidade, sua “branquitude”, seus privilégios econômicos, isso significa se moldar aos ideais dominantes, mas também recalcar outros aspectos de sua personalidade: seu lado homossexual, seu lado feminino, seu lado negro… Como todo mundo “o macho branco” negocia de forma permanente. Ele pode arriscar. Mas às vezes, quando ele se olha no espelho, ele vê…uma mulher. E tudo em que ele acreditava desaba em pedaços.
Le Nouvel Observateur – A teoria do gênero tem um objetivo político?
Judith Butler – Eu penso nas pessoas cujo gênero ou a sexualidade foram rejeitados, e eu gostaria de contribuir ao advento de um mundo onde elas possam respirar mais facilmente. Tomemos por exemplo o caso da bissexualidade: a noção de orientação sexual faz com que seja muito difícil amar tanto um homem quanto uma mulher. Dirão a você que tem que escolher. Veja ainda a situação dos “intersexos”, as pessoas sexualmente ambíguas ou indeterminadas: alguns pedem que a sua ambiguidade seja aceita como tal e que eles não tenham que virar homem ou mulher. Como fazer para ajudá-los? A Alemanha acaba de criar um terceiro gênero como categoria administrativa. Eis aí uma forma de deixar o mundo mais tolerável para todos.
Le Nouvel Observateur - Podemos nos liberar do gênero? Alguns defendem um mundo onde o sexo seria apenas uma variável secundária como a cor dos cabelos ou o tamanho…
Judith Butler – Eu nunca pensei que precisaríamos de um mundo sem gênero, de um mundo pós-gênero, da mesma forma que não acredito em um mundo pós-racial. Na França, os eleitos da esquerda pediram que fosse retirada a palavra “raça” da constituição. É um absurdo! Isso implica em construir um mundo sem história, sem formação cultural, sem psiquê… Nós não podemos agir como se a colonização não tivesse existido e como se não existissem as representações raciais. O mesmo, em relação ao gênero: nós não podemos ignorar a sedimentação das normas sexuais. Nós precisamos de normas para que o mundo funcione, mas nós podemos procurar aquelas que melhor nos sirvam.
Le Nouvel Observateur - Nos países ocidentais, a direita e mesmo a extrema direita utilizam o tema da homossexualidade para denunciar o Islã e o acusá-lo de homofobia. Em 2010, na gay pride de Berlim, você recusou um prêmio denunciando a tendência xenofóbica do movimento homossexual. Essa preocupação ainda é atual?
Judith Butler – Existe uma maneira nacionalista, de direita, de defender os homossexuais. Porém, de outro lado encontramos gays e lésbicas que combatem ao mesmo tempo a homofobia e o nacionalismo extremo. Portadores de um projeto de justiça social, eles não se contentam de reclamar direitos só para eles mesmos mas também para as outras minorias, notadamente para os imigrantes. O que me incomodou em Berlim é que o único grupo acerca do qual as associações alemãs denunciavam a homofobia eram os imigrantes muçulmanos. Como se fosse fácil ser um adolescente gay no sistema educacional alemão! Como se as igrejas tivessem apoiado a demanda dos homossexuais! Reduzir a homofobia na Europa ao Islamismo, isso permite afirmar: nós europeus, nós somos civilizados, nós não somos homofóbicos como os muçulmanos! É fazer do Islã um bode expiatório. Ora, a questão é muito mais complexa! Por exemplo: alguém que já foi no Cairo ou em Ramalla sabe que lá existem comunidades gays muito ativas!
Le Nouvel Observateur - Você fez críticas às leis francesas que proíbem o uso do véu islâmico na escola e aquela da burca. No entanto, este é um exemplo claro da discriminação relativa ao gênero…
Judith Butler – Eu não entendo a fixação francesa nesse assunto. O véu pode, claro, ser um símbolo de submissão mas é também um símbolo que indica afiliação a uma família, a uma religião, a um país de origem, a uma comunidade. Forçar uma mulher a retirar o véu, é obrigá-la a cortar de seus vínculos, se desenraizar. Claro, podemos julgar, pensar que romper os vínculos com sua habitação de origem é algo bom, mas o Estado não tem que fazer disso uma norma obrigatória. Retirar o véu, para uma muçulmana, deve ser uma escolha, como o casamento gay: ninguém obriga você a se casar, mas lhe dão a possibilidade de fazê-lo. É uma norma, mas não uma obrigação.
Leia a matéria completa em: Entrevista: Judith Butler - Geledés
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