segunda-feira, 16 de fevereiro de 2015

A filosofia está morta, só nos resta a física

A tocha do conhecimento mudou de mãos. Cabe à ciência oferecer soluções.

Por Stephen Hawking e Leonard Mlodinow*
Cada um de nós não existe a não ser por um breve intervalo de tempo e, nesse intervalo, explora apenas uma pequena parte de todo o universo. Mas a espécie humana é uma espécie curiosa. Fazemo-nos perguntas, buscamos respostas.

Vivendo neste mundo sem fronteiras, que pode ser ora amigável, ora cruel, e voltando o olhar aos céus imensos que estão sobre nós, os homens sempre se puseram uma multidão de interrogações. Como podemos compreender o mundo em que nos encontramos? Como o universo se comporta? Qual é a natureza da realidade? Qual a origem de tudo isso? O universo precisou de um criador? A maior parte de nós não dedica muito tempo para se preocupar de tais questões, mas quase todos, de vez em quando, pensamos nelas.

Durante séculos, essas interrogações foram de pertinência da filosofia, mas a filosofia morreu, não tendo mantido o passo dos desenvolvimentos mais recentes da ciência e particularmente da física. Assim como foram os cientistas que pegaram a tocha da nossa busca do conhecimento.

Este livro se propõe a dar respostas que foram sugeridas pelas descobertas e pelos progressos teóricos recentes. Essas respostas nos levam a uma nova concepção do universo e do nosso lugar nele muito diferente da tradicional e diferente também daquela que pudemos delinear há apenas uma década ou duas. Porém, a nova concepção começou a tomar forma embrionária quase um século atrás.

As teorias quânticas 

Segundo a concepção tradicional do universo, os corpos se movem em trajetórias bem determinadas e tem histórias definidas, assim como é possível especificar a sua exata posição em cada instante do tempo. Embora tal descrição seja bastante satisfatória para os objetivos da vida cotidiana, nos anos 1920 descobriu-se que essa imagem "clássica" não era capaz de dar conta do comportamento aparentemente bizarro observado nas escalas das entidades atômicas e subatômicas. Ao contrário, era necessário adotar um quadro conceitual diferente, chamado física quântica.

As teorias quânticas demonstraram ser extraordinariamente precisas em prever os eventos em tais escalas e, ao mesmo tempo, capazes de reproduzir as previsões das velhas teorias clássicas quando eram aplicadas ao mundo macroscópico da vida cotidiana. Porém, a física clássica e a quântica são baseadas em concepções muito diferentes da realidade.

As teorias quânticas podem ser formuladas de modos muito diferentes, mas a descrição provavelmente mais intuitiva foi proposta por Richard Feynman (chamado de Dick), uma personalidade brilhante que trabalhava no California Institute of Technology e tocava bongô em uma casa de strip-tease dos arredores.

Segundo Feynman, um sistema não tem uma única história, mas todas as histórias possíveis. Mais adiante, na nossa busca das respostas, explicaremos nos particulares a afirmação de Feynman e nos serviremos dela para analisar a ideia de que o próprio universo não tem uma única história, nem uma existência independente.

Realidade ingênua 

Essa parece ser uma ideia radical, também a muitos físicos. Com efeito, como muitos conceitos da ciência atual, ela parece estar em conflito com o senso comum. Mas o senso comum é baseado na experiência de todos os dias, não no universo como ele se nos revela mediante maravilhas da tecnologia como as que nos permitem avançar o olhar até o coração do átomo ou de volta ao universo primordial.

Até o advento da física moderna, era opinião comum que o mundo pudesse ser inteiramente conhecido por meio da observação direta, que as coisas são o que parecem, assim como são percebidas mediante os nossos sentidos. Vice-versa, o espetacular sucesso da física moderna, baseada em conceitos que, como o de Feynman, estão em contraste com a experiência cotidiana, demonstrou que as coisas não são assim.

A concepção ingênua da realidade, portanto, não é compatível com a física moderna. Para enfrentar tais paradoxos, adotaremos uma sistematização que chamaremos de realismo dependente dos modelos. Essa sistematização se baseia na ideia de que o nosso cérebro interpreta a informação proveniente dos órgãos sensoriais construindo um modelo do mundo. Quando um modelo semelhante consegue explicar os eventos, tendemos a atribuir a ele e aos elementos e aos conceitos que o constituem a qualidade da realidade ou da verdade absoluta. Mas pode haver modos diferentes para criar um modelo da mesma situação física, e cada um deles poderá utilizar elementos e conceitos fundamentais diferentes.

Ao longo da história da ciência, descobriu-se uma série de teorias ou modelos sempre melhores, da concepção de Platão à teoria clássica de Newton, até as modernas teorias quânticas. É natural perguntar-se: essa sequência, no fim, terá um ponto de chegada, levará a uma teoria definitiva do universo que inclua todas as forças e anuncie toda observação que é possível fazer, ou continuaremos descobrindo para sempre teorias de eficácia crescente, sem, porém, jamais aportar a uma que não possa ser posteriormente melhorada?

A teoria M

Hoje, dispomos de uma candidata ao papel de teoria última do todo, admitindo-se que exista efetivamente uma, e essa candidata é chamada de teoria M.

A teoria M não é uma teoria no sentido usual. É uma família inteira de teorias diversas, cada uma das quais é uma boa descrição das observações apenas dentro de uma certa gama de situações físicas. É um pouco como acontece no caso dos mapas geográficos. Como se sabe, não é possível representar toda a superfície terrestre em um único mapa. A projeção habitual de Mercator, utilizada para os planisférios, faz com que as áreas pareçam sempre maiores assim que se vá para o norte ou para o sul e não cobre as regiões dos polos. Para representar fielmente toda a Terra, deve-se recorrer a uma série de mapas geográficos, cada um dos quais cobre uma região limitada. Os vários mapas se sobrepõem parcialmente entre si e, onde isso ocorre, mostram a mesma paisagem. A teoria M é, de algum modo, análoga.

As várias teorias que formam essa família podem parecer muito diferentes, mas podem ser consideradas como aspectos da mesma teoria fundamental. São versões da teoria aplicáveis só em âmbitos limitados: por exemplo, quando certas grandezas, como a energia, são pequenas. Como ocorre para os mapas que se sobrepõem, onde os âmbitos de validade das várias versões se sobrepõem, estas predizem os mesmos fenômenos. Mas exatamente como não há nenhum mapa plano que seja uma boa representação de toda a superfície terrestre, também não há nenhuma teoria que, sozinha, seja uma boa representação das observações em todas as situações.

Veremos como a teoria M pode oferecer soluções para a questão da criação. Segundo essa teoria, o nosso universo não é o único. Ou, melhor, a teoria prediz que um grande número de universos foi criado do nada. A sua criação não exige a intervenção de um ser sobrenatural ou de um deus, enquanto esses múltiplos universos derivam de modo natural da lei física: são uma predição da ciência. Cada universo tem muitas histórias possíveis e muitos estados possíveis em tempos sucessivos, isto é, em tempos como o presente, muito distantes da sua criação.

Grande parte desses estados serão radicalmente diferentes do universo que observamos, e apenas pouquíssimos deles permitiram a existência de criaturas como nós. Portanto, a nossa presença seleciona dessa imensa gama somente aqueles universos que são compatíveis com a nossa existência. Embora sejamos minúsculos e insignificantes na escala do cosmos, isso faz de nós, em certo sentido, os senhores da criação.

Para compreender o universo no nível mais profundo, devemos saber não apenas como ele se comporta, mas também por quê. Por que há algo ao invés de nada? Por que existimos? Por que esse particular conjunto de leis e não qualquer outro? Essa é a interrogação fundamental sobre a vida, o universo e o todo.
* Este é um trecho do último livro dos físicos norte-americanos Stephen Hawking e Leonard Mlodinow, Perché il Grande Disegno non Dipende da Dio [The Grand Design]. Os excertos foram publicados no jornal La Repubblica. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

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