Somos chamados a reconhecer em Jesus o Filho amado do Pai. Vamos escutá-lo.
Por Marcel Domergue*
O relato da Transfiguração, para Mateus, Marcos e Lucas, é uma experiência mística insólita, mas cheia de significado, localizada num ponto bem determinado do percurso de Jesus. Havia acabado de anunciar nas cidades e vilarejos ao Norte da Palestina a proximidade do Reino.
As pessoas, vendo os seus atos e ouvindo as suas palavras, se perguntam: quem é este homem? Pedro, em nome dos discípulos, havia declarado ser ele o Cristo, ou seja, Aquele que, estando impregnado pelo Espírito de Deus, vem estabelecer a sua soberania sobre todas as coisas. Ele é quem Israel espera desde sempre. Jesus, a seguir, anuncia que deve dirigir-se a Jerusalém, para ser rejeitado, crucificado e ressuscitar. Faz então meia volta e toma a direção de Jerusalém. Aos que querem ser seus discípulos, diz que devem segui-lo neste caminho. E que, se querem poupar a sua vida, haverão de perdê-la.
Neste ponto preciso, quando já está a caminho da “cidade que mata os profetas”, situa-se a Transfiguração. Jesus toma consigo os três primeiros discípulos que o haviam seguido e os conduz a uma alta montanha. O que equivale que se vai para um cume, para o ápice da revelação do plano de Deus e da profecia do ponto terminal para o qual estamos indo. Este ponto terminal aparece desde as primeiras linhas: trata-se do esplendor de cada um dos filhos dos homens e de nossa própria glorificação, em Cristo.
Moisés e Elias
Duas figuras emblemáticas. Moisés é o legislador e sua palavra tem autoridade. Elias é o profeta típico. Estas duas figuras simbolizam e recapitulam toda a primeira Aliança. Lembremo-nos dos discípulos de Emaús: para estes homens bloqueados na interpretação dos acontecimentos a partir da certeza da morte, Jesus, “começando por Moisés e percorrendo todos os Profetas, interpretou-lhes em todas as Escrituras o que a ele dizia respeito.”
Estamos aqui diante de uma mudança fundamental. Como tudo o que Moisés e os Profetas anunciavam e preparavam está agora realizado, entramos então em um novo regime. “Os tempos se cumpriram.”
Aliás, assim como vemos Moisés e Elias, que são figuras do mundo antigo, vemos também os pilares do novo mundo que está por vir: Pedro, Tiago e João. Estes três, neste momento, estão totalmente inconscientes do que se passa e, mais ainda, do que irá acontecer. Lucas mostra-os até mesmo adormecidos, como no Getsêmani: estão ausentes diante do espetáculo antecipado da Ressurreição, assim como estarão no aproximar-se da Paixão.
Pedro, no entanto, toma consciência desta antecipação figurada da vitória final. Sua proposta de erguer três tendas significa que deseja instalar-se onde a glória se manifesta. Como descrito poucas linhas antes deste relato (em 8,32), permanecera impermeável à perspectiva do “caminho da cruz”. Estaria querendo imobilizar Jesus na Primeira Aliança, junto com Moisés e Elias que estavam ali para representá-la? “Ergamos três tendas”!
Jesus só
No momento em que punham o pé na estrada, rumo à crucifixão do Filho, os discípulos tinham necessidade de serem confirmados em sua fé em Jesus. O resplendor do seu rosto e das suas vestes ofuscava-lhes o sentido da visão.
Foi preciso que se lhes passasse o significado através de uma palavra dirigida aos ouvidos. Uma voz vinda da nuvem (sinal da presença divina durante todo o Êxodo) designa Jesus como o Filho bem-amado. E nem mesmo o espetáculo da sua angústia e sofrimento deve levá-los a duvidar desta afirmação. Onde quer que ele for, devemos escutá-lo e segui-lo, com a certeza de que, de qualquer forma, para nós como para ele, o ponto de chegada será a “glória”. Mas eis que “de repente” tudo se apaga: nada de Moisés ou Elias nem de luz ou voz celeste.
A Primeira Aliança pára de falar. Deus permanece mudo, mesmo se este silêncio é devido à nossa surdez e o desaparecimento da luz devido à nossa cegueira. “Não viram mais ninguém, a não ser somente Jesus com eles.” O Jesus de todos os dias. É preciso descer das alturas para retomar a vida de todo dia. Pensemos no fim do relato da Anunciação: “E o anjo a deixou...”.
Este mesmo esquema encontra-se muitas vezes nos evangelhos: um tempo de uma luz muito viva e de revelação, para, depois, voltar-se ao cotidiano, à caminhada na noite da fé. Aí é que estamos. E nesses tempos de silêncio de Deus, é importante reviver a lembrança dos momentos fugidios da luz. Foi assim que Maria conservava todas estas coisas em seu coração.
Croire
*Marcel Domergue é sacerdote jesuíta, publicada no sítio Croire. O texto é baseado nas leituras do Batismo do Senhor, correspondentes ao 2º Domingo da Quaresma - Ano B (1° de março de 2015). A tradução é de Francisco O. Lara, João Bosco Lara, e José J. Lara.
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