domingo, 15 de fevereiro de 2015

Grito de ‘impeachment’ no ar

Corrupção, recessão e racionamento compõem o clima anti-Dilma

Por Rodolfo Borges*

O primeiro presidente eleito pela população brasileira após 20 anos de ditadura militar não terminou o próprio Governo. Foi em 1992, com o processo de impedimento do hoje senador Fernando Collor de Melo, que o brasileiro se familiarizou com o dispositivo do impeachment, que, 23 anos depois, volta a assombrar a política brasileira em meio ao maior escândalo de corrupção da história do país, à expectativa de recessão econômica e à ameaça de racionamento de água e de energia. E isso não é exclusividade de Dilma Rousseff. Desde a queda de Collor, os brasileiros se acostumaram a clamar pela retirada antecipada de cada presidente eleito.

O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso se acostumou aos gritos de "Fora FHC" durante o segundo mandato (1999-2002), quando o país entrou em crise em meio à desvalorização do real, levando a protestos como a "Marcha dos 100 mil", que cobrava sua saída. Seu sucessor, Luiz Inácio Lula da Silva, também esteve ameaçado de cair no fim do primeiro mandato, pelo escândalo do mensalão, e, segundo o que registra a crônica política, isso só não ocorreu porque seus opositores apostaram equivocadamente que o desgaste do caso dispensava o impeachment, pois seria o bastante para impedir a reeleição de Lula.

A insistência, eleição após eleição, de gritar "impeachment" tem a ver com a boa lembrança que o brasileiro tem do processo que levou à renúncia de Fernando Collor em 1992, arrisca o cientista político Leonardo Barreto, doutor pela Universidade de Brasília. A queda do presidente criou as condições para a implementação do Plano Real, que estabilizou a economia brasileira após anos de turbulência. A renúncia de Collor também deixou a impressão de protagonismo da população, que, já enervada pelo confisco das poupanças (entre outras medidas de ajuste) para frear a inflação, foi às ruas para protestar contra um presidente envolto em suspeitas de corrupção desde sua campanha.

"Fora Dilma"

Não é de se espantar, portanto, que, em meio ao novo clamor de impeachment, surjam boatos de confisco da poupança dos correntistas da Caixa Econômica Federal, desmentidos nesta sexta-feira pelo ministro da Fazenda, Joaquim Levy. "Tais informações são totalmente desprovidas de fundamento, não se conformando com a política econômica de transparência e a valorização do aumento da taxa de poupança de nossa sociedade, promovida pelo governo, através do Ministério da Fazenda", informou o Ministério da Fazenda em nota.

A gritaria contra a presidenta Dilma Rousseff soa isolada em ruas e redes sociais desde o dia de sua reeleição, em 26 de outubro do ano passado, mas entrou na pauta política do país com o surgimento das primeiras ramificações políticas da Operação Lava Jato, principalmente depois da denúncia de que o tesoureiro do PT, João Vaccari Neto, teria recebido 200 milhões de dólares em propina por meio de contratos da Petrobras. Foi nesse contexto que o jurista Ives Gandra Martins redigiu um parecer para dizer que já existe base jurídica para um pedido de impedimento da presidenta.

O parecer de Gandra, que aponta a “improbidade por culpa” da presidenta no caso Petrobras, não repercutiu apenas por causa da reputação de seu autor. O jurista elaborou sua avaliação sobre o caso a pedido de José de Oliveira Costa, que vem a ser membro do conselho do Instituto do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, a quem atende em causas judiciais. Confrontado com o caso, FHC apressou-se em dizer, em seu perfil no Facebook, que “não há ameaças golpistas, a não ser na imaginação de partidários do governo que sentindo o descalabro procuram justificativas jogando a responsabilidade em ombros alheios”.

Os opositores do Governo resistem em defender abertamente o impeachment neste momento, mas, apostando no desgaste da gestão Dilma, não deixam o assunto sair do foco, e alguns deles, como o senador Ronaldo Caiado (DEM), ensaiam ir à passeata conta a presidenta marcada para 15 de março. O movimento, que conta com adesões em 15 Estados, ganhou força depois que pesquisa Datafolha mostrou uma brusca queda de popularidade da presidenta Dilma Rousseff. Nesta semana, após a divulgação da pesquisa, a consultoria política Arko Advice elevou de 15% para 30% a probabilidade de um pedido de impeachment prosperar — para o Eurasia Group, “a possibilidade de impeachment segue baixa (20%), mas se tornou um risco real a se monitorar”.

Pressão

Segundo o líder do PSDB no Senado, Cássio Cunha Lima, “a palavra impeachment está escrita na nossa Constituição e, portanto, por ser um tema constitucional, não tem de causar arrepio em ninguém”. O senador tucano acrescentou, em plenário, que “se chegar o instante em que a Constituição tenha de ser cumprida, ela será cumprida”. Eleito por um partido da base do Governo, o senador Cristovam Buarque (PDT) engrossou o coro: “A palavra impeachment não deve causar arrepio porque está na Constituição. O que causa arrepio é estar na boca do povo.”

Do outro lado, governistas como o senador Lindbergh Farias (PT), que liderou os protestos dos caras-pintadas durante o processo de impeachment de Collor, reagem contra o que chamam de “golpismo”. “Não temos problema de falar em impeachment, a não ser quando serve para patrocinar um golpe”, disse em plenário a senadora Gleisi Hoffmann, admitindo, contudo, que o Governo precisa melhorar a comunicação sobre seus feitos para afastar o clamor ainda localizado de derrubada da presidenta. E o antídoto para os riscos que um processo político contra Dilma pode de fato estar numa “batalha de comunicação”, convocada pela própria presidenta na primeira reunião ministerial de seu segundo mandato — e que deve levá-la à televisão após o carnaval para defender seu Governo.

O clamor pelo impeachment de Dilma tem elementos parecidos ao processo que levou à renúncia de Collor em 1992, como a quebra de confiança sobre a capacidade do Governo de sanear os problemas econômicos do país e uma tensão entre o Palácio do Planalto e o Congresso Nacional, simbolizada pela eleição de Eduardo Cunha para a presidência da Câmara. “Mas Dilma tem uma coisa que Collor não tinha: apoio popular”, comenta o cientista político Leonardo Barreto.

Barreto lembra que o consenso social pela queda de Collor contribuiu para que a maioria do então presidente da República no Congresso se virasse contra ele e aceitasse o pedido de impeachment. “Agora, Dilma, que acabou de ser reeleita com 54 milhões de votos, tem o apoio de alguns grupos sociais. O que leva a questionar se os líderes do Congresso topariam dar início a um processo como esse, muito desgastante, que poderia levar as pessoas de volta aos gramados da Esplanada dos Ministérios para protestar”, diz o cientista político, lembrando dos protestos de junho de 2013.

O presidente da Câmara, Eduardo Cunha, por quem o pedido de impeachment terá de passar se ocorrer até 2016, tem dito que "não há espaço" para discutir o assunto. "Não concordo com esse tipo de discussão e não terá o meu apoiamento", disse o deputado que, eleito a partir de uma plataforma de independência, vem impondo sucessivas derrotas ao Governo no Congresso Nacional.

Como funciona o 'impeachment'

Quem decide o futuro do presidente no processo de impeachment é o parlamento. De acordo com a Lei 1.079 de 1950, "é permitido a qualquer cidadão denunciar o Presidente da República ou Ministro de Estado, por crime de responsabilidade, perante a Câmara dos Deputados". Mas cabe aos parlamentares investigar e decidir pela permanência ou saída do presidente.
Pelo menos 342 dos 513 deputados precisam aceitar a denúncia, para que o Senado abra um processo de investigação a ser presidido pelo presidente do Supremo Tribunal Federal, hoje o ministro Ricardo Lewandowski. Durante as apurações, que podem durar até 180 dias, o presidente deve permanecer afastado (o vice assume), e só perderá o mandato se dois terços dos senadores (54) assim decidirem.

Caso os 180 dias não sejam necessários para encerrar a questão, as apurações seguem, mas o presidente reassume o cargo. Se os parlamentares decidirem que o presidente deve sair, quem assume é seu vice, no caso o peemedebista Michel Temer.
*Rodolfo Borges é correspondente no Brasil do El País, onde esta reportagem foi publicada originalmente

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