domingo, 15 de março de 2015

Na transcendência a verdadeira libertação

Por Oscar Arnulfo Romero*

É para render graças a Deus que uma mensagem, que não quer ser nada mais do que uma modesta reflexão sobre a palavra de Deus, encontra canais maravilhosos para difundir-se e atingir muitas pessoas (a referência é à difusão da homilia trâmite Radio Ysax “A voz pan-americana”). 
Penso que, no contexto da Quaresma, tudo é uma preparação à nossa Páscoa. E que já por si a Páscoa é um grito de vitória, porque ninguém pode extirpara aquela vida que Cristo ressuscitou, nem a morte, nem todos os sinais de morte, de ódio contra ele e contra a sua Igreja poderão vencer. E ele o vencedor!
Assim como ele refulgirá numa Páscoa de ressurreição sem fim, igualmente é necessário acompanhá-lo numa Quaresma, numa Semana santa, que é cruz, sacrifício, martírio. Ele o disse: “Bem-aventurados aqueles que não se escandalizam com a própria cruz!” A Quaresma, de fato, é uma chamada a celebrar a nossa redenção neste difícil conúbio de cruz e vitória. O nosso povo é atualmente muito provado, tudo em torno nos fala de cruz. Mas, quantos têm fé e esperança cristã sabem que, além deste calvário de El Salvador, está a nossa Páscoa, a nossa ressurreição.
Esta é a esperança do povo cristão.
Durante estes domingos de Quaresma tentei descobrir na revelação divina, na Palavra que se lê aqui na Missa, o projeto de Deus para salvar os povos e os homens. Por isso, hoje que emergem vários projetos históricos para o nosso povo, podemos estar certos: será vencedor aquele que melhor respeitar o projeto de Deus. E esta é a missão da Igreja. Por isso, à luz da Palavra que revela o projeto de Deus para a felicidade dos povos, temos o dever, amados irmãos, de reconhecer as coisas como são, isto é, ver como dentro de nós se reflete ou é desprezado o projeto de Deus. Ninguém leve a mal se, à luz da Palavra de Deus que lemos na nossa Missa, iluminamos as realidades sociais, políticas, econômicas, já que não fazê-lo não seria para nós cristianismo. E é por isso que Cristo quis encarnar-se, para que esta luz que recebe do Pai se transforme em vida para os homens e os povos.
Eu sei que são muitos aqueles que se escandalizam por esta palavra e querem acusá-la de ter abandonado apregação do Evangelho para meter-se em política. Mas não aceito esta acusação, antes, faço um esforço para que tudo o que o Concilio Vaticano II, as assembléias de Medellin e de Puebla quiseram promover não o tenhamos só nos livros para estudá-lo em teoria, mas o vivamos e o traduzamos dentro desta realidade conflitiva, a fim de pregar o Evangelho como se deve... para o nosso povo. Por isso prego o Senhor ao longo de toda a semana, enquanto acolho o clamor do povo e a dor por tantos crimes, a ignomínia de tanta violência, afim de que me dê a palavra oportuna para consolar, denunciar, convidar ao arrependimento. Embora sendo uma voz que grita no deserto, sei que a Igreja está fazendo esforços para cumprir com sua missão.
Nos domingos da Quaresma temos, portanto, visto um projeto de Deus que poderemos realizar assim: Cristo é o caminho. Por isso nos é apresentado enquanto jejua e vence as tentações no deserto. Cristo é a meta e a vida, o movente, por isso nos é apresentado transfigurado, como para chamar-nos a esta meta à qual todos os homens são chamados. Nestes domingos, terça, quarta e quinta, vemos a colaboração que Deus pede aos homens para salvá-los: sua conversão, sua reconciliação com ele. Com exemplos belíssimos – como a figueira estéril, o filho pródigo e, nesta manhã, a adúltera que se arrepende e é perdoada – Deus nos chama e nos diz que virá ao nosso encontro como o pai do filho pródigo, como o salvador da adúltera: não existe pecado que não seja perdoado, não há inimizade que não se possa reconciliar, quando haja uma conversão e um retorno sincero ao Senhor. É a voz da quaresma!
As leituras da Quaresma nos dizem também como Deus aplica o seu projeto na história, para fazer da história dos povos a sua história de salvação. E, na medida em que estes povos acolhem o projeto de Deus de salvar-nos em Cristo com a conversão, nesta medida os povos se salvam e se tornam felizes. Por isso, na primeira leitura de todos os domingos da Quaresma está a história de Israel, o povo paradigma, o povo exemplar, exemplar mesmo nas suas infidelidades e nos seus pecados, para que neles também aprendamos como Deus castiga a infidelidade. É modelo também no revelar a promessa de salvação de Deus. Após Abraão temos re-percorrido com Moisés a peregrinação no deserto, com Josué chegamos à celebração da Páscoa na Terra prometida. E hoje nos convida a um segundo êxodo: o retorno da Babilônia. (...) À luz das palavras divinas de hoje vos apresento esta reflexão de título “A igreja, um serviço de libertação pessoal, comunitária, transcendente”.
Estes três adjetivos sublinham os três pensamentos da homilia:
1) a dignidade da pessoa é a coisa principal a libertar;
2) Deus quer salvar todo o povo;
3) A transcendência dá à libertação sua verdadeira e definitiva dimensão.
Avvenire, 12-03-2015.
*Homilia pronunciada pelo arcebispo Oscar Arnulfo Romero aos 23 de março de 1980 na Catedral de San Salvador.

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