quinta-feira, 5 de março de 2015

Papa Francisco e a iniquidade social

Dividir a sociedade em 'produtores' e 'consumidores' é um pensamento que o pontífice condena.

Por Robert W. McElroy*
Em um tweet datado de 28 de abril de 2014, o papa Francisco escreve que “a iniquidade é a raiz dos males sociais”. Essa afirmação resulta indigesta para muitos católicos americanos que a criticaram como sendo radical, simplista e enganosa: um real contraste ao entusiasmo com o qual o novo pontífice suscita nos Estados Unidos. Até sua eleição, o papa Francisco chamou a atenção dos americanos com a sua mensagem e o seu modo de agir, embora tenha sido confiado a renovar a nossa vida e a nos converter. Os americanos foram conquistados pelo seu chamado a construir uma cultura religiosa não estigmatizada, aprovando a reforma das estruturas vaticanas e admirando a atenção contínua do Papa Francisco às necessidades pastorais de homens e mulheres comuns.
O fato que o ensino sobre o escândalo das desigualdades econômicas no mundo contemporâneo faz surgir reações definitivamente contrastantes não dissuadiu o papa de repetir inúmeras vezes, e com força, sobre um tema que está em seu coração. O tweet de abril, de fato, resume uma reflexão mais aprofundada existente no n° 202 dos Evangelii gaudium (EG).
Segundo o papa Francisco, a iniquidade está na base de um processo de exclusão que impede a participação ativa à vida social, política e econômica de uma grande parcela da nossa sociedade. Dá vida a um sistema financeiro que domina a humanidade ao invés de estar a seu sérvio e a um capitalismo que literalmente mata aqueles que não são úteis como consumidores. Inevitavelmente tais exclusões destroem as bases da paz e da segurança no interior da nossa sociedade a nível mundial. O grito do pobre capturado pela Evangelii Gaudium é um desafio à “mentalidade individualista, indiferente e egoísta” (n. 208) tão difundida em muitas culturas a nível mundial; é um chamado ao confronto do mal da exclusão econômica e dar inicio a um processo de reformas estruturais que conduzam à inclusão ao invés da marginalização.
Vozes autoritárias do mundo da política, da economia e do trabalho se aliaram para identificar os limites da receita do papa. Alguns comentários se revelaram superficiais e fortemente politizados; outros, agudos e penetrantes. As críticas ao Papa Francisco se fixam em três elementos principais: o papa não entende a importância do mercado; o capitalismo criticado por papa Francisco é muito diferente do sistema econômico dos Estados Unidos; o ponto de vista do papa é distorcido pelas suas origens latino-americanas e não está de acordo com os ensinamentos dos seus predecessores. Por consequência, as suas críticas ao sistema econômico mundial são consideradas por vezes ingênuas, sem sentido ou muito extremas do ponto de vista doutrinal.
Mas, depois de uma leitura aprofundada das palavras do papa Francisco e da quantidade de críticas que isso provoca, se identifica outra possibilidade: a rejeição não deriva do fato que o papa não aprecie adequadamente a centralidade dos mercados, a natureza do sistema econômico americano ou o percurso da autêntica doutrina social da Igreja, mas do fato que, de certa forma, consegue muito bem e então coloca ao fundo interrogações sobre justiça e sobre o sistema econômico americano.
Em particular, aquilo que o papa escreve sobre iniquidade e justiça econômica evidencia os erros lógicos implícitos em uma seria de pressupostos culturais profundamente arraigados na sociedade americana, que mantém o significado e o valor da desigualdade econômica, a moralidade do livre mercado e a relação entre a atividade econômica e o lugar que cada um ocupa na sociedade. Somente a análise dos méritos de cada um destes pressupostos permite avaliar o volume da crítica e da batalha do papa Francisco. Somente a análise da mentalidade que a junção destes pressupostos criou permite entender de que forma eles cortam pela raiz a possibilidade de aumentar a justiça do sistema econômico americano e da comunidade mundial.
A ordem natural
O primeiro pressuposto é que os atuais índices de desigualdade econômica fazem parte do funcionamento natural de um sistema econômico são. A lógica que fundamenta essa afirmação é simples: qualquer sistema econômico que procure favorecer o crescimento deve incentivar a iniciativa e o trabalho individual. Por essa razão, a desigualdade será um elemento constitutivo de todos os países que dão valor ao crescimento.
Segundo este pressuposto, as desigualdades econômicas são naturais mesmo em um sentido mais fundamental. A desigualdade nasce do direito dos homens e mulheres de utilizar os próprios talentos da forma que melhor julgarem e pela justa exigência de recompensar os indivíduos pela contribuição dada a iniciativas específicas. É legítimo que as sociedades tenham a obrigação de assegurar o limiar do crescimento econômico aos seus cidadãos, mas ir além e procurar limitar a desigualdade econômica não somente obstruiria o crescimento, mas violaria princípios basilares de justiça.
Mas para a doutrina católica este pressuposto, profundamente enraizado na cultura americana, é radicalmente inaceitável. O ponto de partida do pensamento da Igreja não é a necessidade de maximizar o crescimento econômico ou o direito dos indivíduos de ser recompensados, mas a igual dignidade de todos os homens e mulheres, criados à imagem de Deus. Como afirma o n° 29 da Gaudium et spes, “A igual dignidade das pessoas requer que se somem condições de vida mais humanas e justas. De fato as desigualdades econômicas e sociais excessivas entre os membros e os povos da única família humana suscitam escândalo e são contrárias à justiça social, à equidade, à dignidade da pessoa humana, além da paz social e internacional”.
Grandes desigualdades entre as nações e no seu interior são automaticamente suspeitas segundo a doutrina católica: não constituem a concretização da ordem natural, representam uma profunda violação.
É crucial perceber que, no texto citado, o Concílio não fala do direito a um salário de subsistência, muito menos controverso, mas explicitamente das disparidades de renda. A doutrina católica reconhece há anos que os danos mais profundos causados pela desigualdade econômica não se manifestam somente na esfera material, mas nos efeitos sociais, psicológicos e políticos que dela derivam. Os excluídos do ponto de vista econômica são também do ponto de vista da instrução, do tipo de habitação ou da oportunidade de encontrar um trabalho digno. Por consequência – conclui o Papa Francisco – são de fato excluídos da sociedade: “Com essa exclusão golpeia-se, na sua própria raiz, a inserção na sociedade em que se vive, uma vez que essa não se encontra nas favelas, na periferia, ou sem poder, simplesmente se está fora. Os excluídos não são 'aproveitados', mas rejeitos, 'sobras'" (EG, n° 53).
A afirmação que extraordinários níveis de desigualdade constituem uma profunda injustiça e não um elemento necessário de ordem natural é o ponto de atrito na base da rejeição da mensagem do papa Francisco nos Estados Unidos. Que a nação mais rica do mundo tenha o nível mais elevado de desigualdade de renda entre os países mais desenvolvidos é uma injustiça, e não a ordem natural. Que as 85 pessoas mais ricas do mundo possuam mais riqueza que os 3,5 bilhões mais pobres é uma injustiça, e não a ordem natural. As correntes de pensamento americanas que consideram índices grotescos de desigualdade inevitáveis em uma economia de mercado constituem uma ideologia da justificação e da autoindulgência, impossível de conciliar com a consciência de ser cúmplices da injustiça e com o imperativo à conversão que jorra de qualquer aplicação sensata do Evangelho às relações econômicas no mundo em que vivemos.
A santidade do mercado
O segundo pressuposto cultural amplamente aceito nos Estados Unidos é que a liberdade de mercado seja um imperativo categórico ao invés de uma liberdade instrumental. Nenhum elemento dos ensinamentos do papa Francisco sobre justiça econômica recebeu mais críticas que a sua rejeição da autonomia absoluta dos mercados. Os defensores do capitalismo americano rebateram as criticas do Papa com duas diferentes argumentações. A primeira sustenta que os sistemas econômicos ocidentais não são completamente autônomos, mas sujeitos à regras que salvaguardam importantes direitos humanos. A segunda sustenta que o livre mercado é o melhor sistema para produzir riqueza em vantagem de todas as classes sociais e para dar atuação ao direito humano fundamental a estipular contratos e a empreender.
Ambas contêm importantes elementos de verdade. No Ocidente os mercados não são livres em sentido absoluto, mas incorporam tutelas basilares da dignidade humana. Além disso, os mercados constituem o mecanismo central na criação da riqueza que permitiu a milhões de pessoas nas últimas décadas deixar a pobreza pra trás, principalmente na China e na Índia. Por fim, os livres mercados dão expressão e subsistência à importante liberdade da pessoa de empreender e estipular contratos. Por todas essas razões, mercados relativamente livres favorecem o instauro da justiça econômica no mundo.
Mas nos últimos cinquenta anos a Doutrina Social da Igreja deixou claro que o livre mercado não constitui um primeiro princípio na justiça econômica. A liberdade dos mercados é pela sua própria natureza puramente instrumental, e deve ser governada pela sociedade e pela política voltada para o bem comum. A encíclica Centesimus annus João Paulo II insere de forma sábia na doutrina social uma avaliação moderna de mercado e esclarece que a liberdade no âmbito econômico deve ser “enquadrada em um contexto jurídico sólido que a coloque a serviço da liberdade humana integral e a considere como uma dimensão particular desta liberdade, cujo centro é ético e religioso” (n. 42).
Tendo frente aos olhos a destruição provocada pela quebra de mercados financeiros em 2008, Bento XVI observa na encíclica Caritas in veritate que a justiça distributiva e também a social são essenciais aos complementos da justiça comutativa típica dos mercados, uma vez que “o mercado, deixado somente ao principio da equivalência de valores dos bens trocados não é capaz de produzir a coesão social da qual necessitam para funcionar corretamente” (n. 35). Com coerência e constância a doutrina da Igreja sustenta que a dignidade da pessoa é o modo de mensurar cada sistema e cada instituição e que os mercados devem estar organizados a partir dessa perspectiva.
É exatamente à luz dessa posição que o papa Francisco se pronuncia sobre o tema de mercado e condena o integralismo de quem se opõe a reformas estruturais que levariam maior igualdade e promoveriam a dignidade humana. Identifica uma proximação “sagrada” às estruturas de mercado existentes, que se opõem a toda proposta de mudança e de reforma em nome da liberdade e da eficiência. Observada através do prisma da sacralidade, qualquer crítica ao status quo é interpretada como um centralismo estatal, invasão da liberdade individual ou impulsionador da estagnação econômica.
A própria sacralização do libre mercado marcou a oposição a todos os principais impulsos reformistas da história econômica dos Estados Unidos: a da reforma agrária do século XIX, as do progressismo do início do século e aquelas do período da Grande Depressão. Em qualquer um destes casos os reformadores se depararam com uma defesa integralista dos mercados, que rotulava qualquer mudança como um ataque a liberdade e a prosperidade. É irônico que seja exatamente sobre essas reformas que os defensores do mercado hoje apontam o dedo com orgulho como prova que a liberdade dos mercados não é absoluta.
A liberdade de mercado é essencial para uma economia robusta e justa, mas é um meio e não um imperativo categórico. Os mercados existem ao serviõ das pessoas e das comunidades. A sociedade e o governo têm a obrigação de regular os mercados de forma que possam desenvolver o seu serviço da melhor forma.
"Produtores" versus "consumidores"
O último pressuposto cultural é que exista na sociedade americana uma contraposição de fundo entre aqueles que contribuem em termos econômicos e aqueles que não o fazem. Essa tendência foi capturada pela retórica da campanha presidencial de 2012, que colocava em lados opostos “produtores” (makers) e “consumidores” (takers). Os primeiros são aqueles que pagam impostos maiores do que os benefícios que recebem da administração pública, enquanto que os segundos são aqueles que recebem benefícios em maior grandeza do que os impostos que pagam. Pela falta de uma definição de quais benefícios deveriam ser computados neste calculo ou de um esclarecimento se aqueles que contribuíram economicamente no passado mas hoje estão aposentados ou inválidos estejam considerados no segundo grupo, a ideia de base é que uma parcela consistente da sociedade americana drena continuamente recursos do sistema econômico.
Essa ideia ganha força também devido ao aumento da desigualdade e da redução da mobilidade econômica daqueles que nascem nas famílias que constituem os 20% mais pobres da população. O resultado é que exatamente a exclusão contra a qual o papa Francisco se insurge prejudicou a retórica pública e a unidade da sociedade americana. Os pobres, que estavam no centro das ações políticas e da atenção pública nos anos 60 e 70 do século passado, se encontram agora relegados a um canto do debate público. Os programas a seu benefício devem ser justificados sobre a base das vantagens colaterais para a classe média. A ideia que seguidamente não é explicitada, mas profundamente radicada nessa mudança cultural, é que os pobres são, em grande parte, responsáveis pela própria pobreza.
Pensar que seja possível dividir uma sociedade em “produtores” e “consumidores” assume exatamente o individualismo que o papa Francisco condena. Pressupõe que a produção da riqueza seja essencialmente uma sociedade individual, desconsiderando a enorme importância da contribuição da sociedade a cada iniciativa empreendedora. Nega a afirmação central da doutrina católica que a criação é obra de Deus doada a humanidade como um todo, e que os bens materiais tem uma destinação universal que não deve ser contradita. A ideologia dos “produtores” e “consumidores” considera o êxito dos mecanismos de mercado não somente como um filtro de primeiro nível para a distribuição dos bens materiais no interior da sociedade, mas qual julgamento ético de mérito, esforço e talento. Exercita um influxo subversivo sobre a sociedade americana, semeando a discórdia e a divisão.
Entre as maiores ironias deste mito é considerado o fato que a estruturação da desigualdade coloca grandes obstáculos à possibilidade dos jovens encontrarem um trabalho digno. Papa Francisco repete seguidamente essa trágica escassez de trabalho. Sem reformas estruturais do sistema econômico, voltadas a remover os obstáculos para o crescimento das ocupações, o círculo vicioso da exclusão econômica e social que está ao centro da batalha lançada pelo papa só irá piorar.
No andamento da sua história, os Estados Unidos conseguiram construir a criatividade dos indivíduos, enormes recursos naturais, liberdade de mercado e coesão social para produzir a economia mais potente que o mundo já conheceu. Mas, como o rico na parábola de Lázaro, pressupostos culturais não conciliados com o Evangelho nos tornam cegos às nossas obrigações, as necessidades dos pobres e dos excluídos. Esses pressupostos distorcidos estão na base da convicção de que a pobreza extrema seja inevitável no nosso país e no mundo, que qualquer reforma estrutural dos nossos mercados quebrará o crescimento econômico e irá instaurar um modelo de centralismo estatal, e que os pobres são merecedores do próprio destino.
Papa Francisco, com a sua visão de uma sociedade de inclusão, nos dá a ocasião de colocar em discussão os pressupostos com a força do Evangelho e fazendo uso do significado substancial da justiça. É essencial que os católicos americanos, como cristão e cidadão que amam a própria pátria, usem com toda a força dessa mensagem de inclusão para confrontar a questão da pobreza, da exclusão e da desigualdade.
Fontes citadas:

CA = João Paulo II, encíclica Centesimus annus, 1991.
CV = Bento XVI, encíclica Caritas in veritate, 2009.
EG = Francisco, exortação apostólica Evangelii gaudium, 2013.
GS = Concílio Vaticano II, constituição pastoral Gaudium et spes, 1965.
America, fevereiro de 2015.
*Robert W. McElroy é bispo auxiliar de San Francisco. Tradução de Ivan Pedro Lazzarotto. O título original do artigo é "Market assumptions. Pope Francis's challenge to income inequality”.

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