A Índia está longe de ser um país isolado no uso e abuso da mulher
Foi em dezembro de 2012 que a inglesa Leslee Udwin decidiu o que fazer. Assim como o resto do mundo, ela havia acompanhado o noticiário sobre o selvagem estupro coletivo da estudante de medicina Jyoti Singh, dentro de um ônibus em Nova Délhi. Para a cineasta nascida em Birmingham, ela mesma vítima de estupro, era imperativo que o caso e seus desdobramentos tivessem um registro documental.
Udwin deixou o marido cuidando dos dois filhos, fincou pé na Índia e mergulhou na penosa reconstituição do crime por dois anos. Acumulou um sólido balaio de entrevistados: os pais da vítima, juristas e políticos, cidadãos comuns e, sobretudo, perpetradores convictos do direito de estuprar.
O caso de Jyoti é conhecido. A jovem doutoranda, cujo prenome significa “luz e felicidade”, havia assistido ao filme “As aventuras de Pi” e voltava para casa de ônibus acompanhada do namorado. Foi estuprada por seis homens (entre os quais o motorista do coletivo) com requintes animalescos. As vísceras que lhe haviam sido arrancadas foram jogadas pela janela, junto com o seu corpo inerte. Jyoti morreu 13 dias depois num hospital de Cingapura, aos 23 anos de idade, em meio a um grito de indignação nacional sem precedentes desde a independência do país. Homens e mulheres marcharam juntos, clamaram por justiça e atordoaram as autoridades.
No intuito de estancar os protestos, o governo designara uma comissão para mapear casos de violência sexual e modernizar a legislação em vigor. Recebeu 80 mil denúncias de estupro já nos primeiros dias. Em menos de um mês produziu um relatório de 630 páginas e os cinco adultos que cometeram o estupro foram condenados à morte. O sexto da gangue, menor de 17 anos, cumpre pena numa instituição correcional.
Tudo isso levou a cineasta britânica a apostar no seu projeto. “Me pareceu que a Índia começava a viver uma Primavera Árabe voltada para a igualdade de gênero”, relembrou Leslee Udwin esta semana, ao explicar por que se decidiu pelo tema. “Ouvi o inesperado grito de ‘basta’ como um protesto por meus direitos também, e os de todas as mulheres do mundo. Era uma bandeira que não havia sido levantada em nenhum outro país até então”, acrescentou.
Assim nasceu “India’s Daughter” (A filha da Índia). Programado para ser exibido hoje, 8 de março, pelo canal 4 da BBC inglesa e pela emissora indiana NDTV, ele teve a trajetória violentada às vésperas do Dia da Mulher.
Na terça feira, o Ministério da Informação e Difusão da Índia proibiu sua exibição em todo o território nacional, sob qualquer forma, plataforma ou roupagem — cinema, televisão, mídias sociais, Google, YouTube. A cineasta teria violado as regras que lhe deram acesso aos estupradores presos, ao não submeter às autoridades o material bruto da filmagem. Na realidade, teriam sido os indianos que se cansaram de assistir às dezenas de horas de filmagem bruta. Receberam então uma versão condensada.
O governo de Nova Délhi fundamentou sua posição com o surrado argumento-padrão de autoridades acuadas: “Isso é uma conspiração internacional para difamar nosso país. Precisamos tentar sustar a exibição também no exterior”, alertou o ministro de Assuntos Parlamentares.
Precavida, a BBC tratou de neutralizar eventuais pressões da antiga colônia britânica. Colocou o documentário no ar quatro dias antes do planejado e ele inexoravelmente será capturado pelos habilidosos “interneteiros” indianos. A estreia em Nova York ocorrerá amanhã com a presença de Merryl Streep e da indiana Freida Pinto, estrela do celebrado “Quem quer ser um milionário?”. Dinamarca, Suécia, Suíça, Noruega e Canadá também já têm exibições agendadas.
O motivo central da indignação oficial indiana está nas declarações de Mukesh Singh, motorista do fatídico ônibus, gravadas por Leslee Udwin no presídio de Tijar. Foi com naturalidade e convicção desconcertantes que Mukesh compartilhou seu ponto de vista. Uma breve amostra de 16 horas de entrevista: “Quando uma mulher é estuprada, ela não deve se defender. Ela deve ficar quieta e deixar as coisas acontecerem. No caso de Lyoti, ela teria sido deixada depois de tudo terminado, só o namorado teria sido espancado... Mulheres decentes não ficam fora de casa depois das nove da noite. Homens e mulheres não são iguais...”
O problema é Mukesh não ser voz fora da curva. Pesquisa inédita realizada entre jovens indianos para medir o seu conhecimento e compreensão do que é viver numa democracia revela um quadro inquietante.
Para mais da metade dos colegiais e universitários ouvidos em 11 capitais estaduais do país (inclusive para 52% das entrevistadas do sexo feminino), as mulheres se vestem e se comportam de forma a induzir o estupro. Metade dos pesquisados pelo instituto Welinkar, de Mumbai, concorda com a afirmação de que a mulher deve desempenhar funções domésticas. E 43% dos respondentes afirmam que a mulher deve aceitar alguma violência.
A Índia está longe de ser um país isolado no uso e abuso da mulher. É apenas o primeiro da lista, com uma denúncia de estupro a cada 21 minutos. No Brasil, uma recente investigação da repórter Malu Delgado para a revista “Piauí” revelou um quadro não menos indigesto de violência sexual, impunidade, humilhações e omissão de responsabilidades no universo acadêmico de maior prestígio do país — a Faculdade de Medicina da USP.
Nos Estados Unidos, o documentário “The Hunting Ground” (Terreno de caça), premiado no festival Sundance de 2015, também acaba de expor com crueza a aterradora cultura do estupro universitário americano e de seu encobrimento. Nos 259 casos de agressão sexual denunciados por alunas da universidade de Stanford, por exemplo, apenas um aluno foi expulso.
Ao banir o filme de Udwin sem sequer tê-lo visto, a Índia perdeu a oportunidade de demonstrar o quanto o país mudou desde aquele sinistro domingo de 2012. O documentário só fez o que autoridades no mundo inteiro preferem não fazer: debater a questão de frente com a sociedade.
Idealmente nos 365 dias do ano comuns a todos os bípedes, e não apenas no desgastado Dia da Mulher.
*Jornalista,
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