Ao receber fundador, papa traz princípios do movimento latino-americano para o primeiro plano.
Por Stephanie Kirchgaessner e Jonathan Watts
Durante décadas, Gustavo Gutierrez, teólogo peruano e padre dominicano, foi tratado com desconfiança e até mesmo com desprezo pela hierarquia do Vaticano, que o viam como um marxista agitador perigoso que usava a fé como um instrumento de revolução. Gutierrez foi o fundador de um movimento progressista dentro da Igreja Católica conhecido como a Teologia da Libertação, e embora nunca tenha sido censurado da forma que alguns de seus compatriotas de filosofia foram, com frequência, havia rumores de que Gutiérrez estava sendo investigado pelo czar doutrinal do Papa João Paulo II, um cardeal alemão chamado Joseph Ratzinger que depois se tornaria Papa Bento XVI.
Entretanto, quando esse peruano de 86 anos de idade chegar a Roma esta semana como um dos principais palestrantes em um evento do Vaticano, ele será recebido como um convidado, em uma demonstração impressionante de como o Papa Francisco - o primeiro pontífice latino-americano - está trazendo para o primeiro plano da sua Igreja alguns dos princípios desse movimento, muitas vezes, considerado controverso, particularmente em seus pronunciamentos contra o flagelo da pobreza e os perigos do capitalismo.
Em seu auge no final dos anos de 1960 e 1970, a teologia da libertação - um movimento americano distintamente latino - pregou que não era o suficiente para que a Igreja simplesmente tivesse empatia e cuidado pelos pobres. Em vez disso, diziam os seus seguidores, a Igreja precisava de ser um veículo fundamental que pressionasse por mudanças políticas e estruturais a fim de erradicar a pobreza, mesmo - alguns acreditavam - se isso significasse apoiar a luta armada contra os opressores.
Na Nicarágua, inspirados pela Teologia da Libertação, os sacerdotes tomaram parte ativa na revolução sandinista de 1979 contra a ditadura de direita de Anastasio Somoza. A filosofia também influenciou rebeldes de esquerda no México e na Colômbia, onde uma das principais facções de guerrilha foi liderada, por quase 30 anos, por Manuel Perez, um padre espanhol que teve suas faculdades ministeriais removidas pela Igreja.
A teologia era tão divisiva durante a guerra fria que, ainda hoje, há alegações de especialistas - que as refutam completamente - que o movimento foi uma invenção da KGB [serviço secreto russo] de forma a colocar a Igreja Católica na América Latina contra os Estados Unidos.
O Papa Francisco nunca proclamou ser um teólogo da libertação e, de acordo com biógrafos papais, até mesmo foi um crítico dos aspectos do movimento ainda quando era conhecido como Padre Bergoglio em sua terra natal na Argentina.
"Ele era muito crítico da versão marxista liberal da teologia da libertação", disse Austen Ivereigh, que escreveu uma biografia do Papa Francisco. "Naquela época, você tinha movimentos de esquerda na América Latina, mas na verdade eram movimentos de classe média, que Bergoglio acreditava utilizavam os pobres como instrumentos. Tinha uma frase que ele usava que dizia que eles eram a favor do povo, mas nunca estavam com eles.
Mas desde a sua eleição como pontífice, em 2013, através de sua insistência de que a Igreja seja "para os pobres" e com seus criticismos ao capitalismo e ao consumismo, um longo caminho vem sendo trilhado para a reabilitação do movimento da Teologia da Libertação e sua incorporação dentro da Igreja. Especialistas apontam, também, para a decisão de Francisco para declarar Oscar Romero, arcebispo salvadorenho que foi assassinado por esquadrões da morte de direita em 1980, como mártir como outro sinal do ressurgimento da Teologia da Libertação.
Matthew J Ashley, presidente do departamento de teologia na Universidade de Notre Dame, onde Gutierrez também é professor, afirma que o papa tem sido grandemente influenciado pela versão argentina da Teologia da Libertação, que é chamada de Teologia do povo. Embora as duas tenham sido vistas, às vezes, como teologias opostas, o próprio Gutiérrez disse que elas simplesmente têm "diferentes sotaques" dentro de uma única teologia.
Ashley diz que o "degelo" entre Gutierrez e o Vaticano começou antes, quando o peruano co-escreveu um livro com Gerhard Müller, cardeal alemão, que é agora o Prefeito da Congregação da Doutrina da Fé e visto como um possível futuro papa. Mas ele reconhece que Gutiérrez nunca foi tão bem-vindo em Roma como agora.
"Há muitos pontos de semelhança entre a teologia de Gutierrez e os pensamentos, discursos e ações do Papa Francisco. Ambos enfatizam que optar pelos pobres exige conhecer os pobres, tornando-se amigo dos pobres ... Ambos têm um grande respeito pela espiritualidade dos pobres, particularmente na vida cotidiana", diz Ashley.
O próprio Vaticano não abraçou formalmente a teologia da libertação. Até o próprio cardeal Müller negou que a sua nomeação como prefeito pelo Papa Francisco - que foi visto em alguns círculos como um triunfo da teologia da libertação por causa da relação entre Müller e Gutierrez - representava a "abertura de um novo capítulo", depois dos papados de João Paulo II e Bento XVI.
"Gostaria de salientar que não há nenhuma descontinuidade entre Bento XVI e o Papa Francisco sobre a questão da teologia da libertação", disse Müller à revista Inside the Vatican em 2013. Mas quando ele foi perguntado sobre se concordava com declaração de Bento XVI em 2009, que a teologia da libertação tinha produzido "rebelião, divisão, dissenso, ofensa e anarquia", Mueller respondeu: "Os aspectos negativos da Teologia da Libertação referidas por Bento XVI são o resultado do mal-entendido e da aplicação errônea dessa teologia".
Jung Mo Sung, proeminente teólogo da libertação no Brasil, diz que a Igreja virou a página sobre a teologia da libertação precisamente porque Francisco entende que a missão da Igreja não é apenas anunciar Deus a um mundo de descrentes "mas para um mundo marcado por uma idolatria do dinheiro".
"Nesse sentido, podemos dizer que parte da teologia da libertação elevou-se à doutrina da Igreja", diz Sung.
Ele atribui essa mudança ao aumento alarmante das desigualdades globais e à experiência pessoal do papa, que já trabalhou em algumas das comunidades mais pobres da Argentina.
Jimmy Burns, autor de uma biografia do pontífice a ser publicada brevemente, concorda que o fato de Francisco ser latino-americano faz uma grande diferença.
"Seu antecessor era um teólogo muito eurocêntrico e João Paulo era virulentamente anti-comunista, oriundo da Polônia", diz Burns.
Outro teólogo que estudou com Gutierrez, Michael Lee, da Universidade Fordham, disse que Francisco está "aberto" à teologia da libertação porque ele compreende as estruturas sociais e econômicas que "desumanizam as pessoas".
"No coração da teologia da libertação está o evangelho - a boa notícia do cristianismo - que não é puramente interior, mas precisa tratar um dos problemas mais prementes do nosso tempo, e isso é a massiva pobreza global", afirma Lee.
The Guardian, 11-05-2015.
*A tradução é de Claudia Sbardelotto.
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