Filme traz ao público a Lenda do Pecado, uma narrativa tradicional da ilha.
Por Nayara Reynaud
Somente em seu epílogo, através das palavras de Ruy Guerra na pele do “homem sábio” da ilha, “Sangue Azul” (2014) traz ao público a Lenda do Pecado, uma narrativa tradicional de Fernando de Noronha, que explicaria a origem de duas famosas formações rochosas do paradisíaco arquipélago: o Rochedo de Dois Irmãos e o Morro do Pico.
Quem conhece o cinema de Lírio Ferreira sabe que a geografia local é uma espécie de personagem em seus filmes, vide a caatinga de “Baile Perfumado” (1996) – sua estreia, em codireção com Paulo Caldas – e o sertão de “Árido Movie” (2006).
Por isso, mais do que metáfora final para a história central dos irmãos e apaixonados Pedro (Daniel de Oliveira) e Raquel (Caroline Abras), o mito está na gênese dessa volta do cineasta à ficção, após os documentários musicais “Cartola” (2007) e “O Homem que Engarrafava Nuvens” (2008).
Daí, o filme, que foi o primeiro rodado inteiramente em Noronha, ser uma ode ao amor: proibido ou cerceado pelo mar, ao mesmo tempo em que, ilhado neste arquipélago de origem vulcânica, fomenta ainda mais os desejos e põe as pessoas em ebulição.
E se nos títulos de seus capítulos – Insônia, Angústia e Infância –, com exceção do inicial, há uma clara citação a Graciliano Ramos, não é apenas homenagem, mas sinal da influência do autor no diretor pernambucano, que igualmente prioriza o ambiente, deixando as imagens falarem mais do que as palavras.
As referências, aliás, são múltiplas no longa, indo de Fellini, na sequência inicial com a montagem do circo Netuno em preto e branco, à gangue de motociclistas de “O Selvagem” (1953) como comparação direta ao fascínio e posterior embate dos nativos com os forasteiros circenses – e, em um âmbito maior, com o próprio cinema –, entre as mais aparentes.
Entre os artistas do picadeiro está Zolah (Daniel de Oliveira), o antigo menino Pedro, nascido naquelas terras insulares, mas dado pela mãe (Sandra Corveloni) ainda jovem para Kaleb (Paulo César Pereio), ilusionista e dono do circo, a fim de criar o garoto.
A intenção era afastá-lo da irmã, já que a proximidade dos dois a preocupava. A volta do filho, apesar de seu grande amor materno represado, faz seus temores voltarem. O Homem-Bala – símbolo fálico mais explícito não há –chega à ilha alimentando o desejo de várias moças, mas sem aplacar o seu, já que o passado ainda o atormenta, mesmo com Raquel estando noiva de seu amigo de infância (Rômulo Braga).
A turva relação dos irmãos não é escancarada, mas revelada nos olhares, meias palavras e no mergulho, de onde vem o melhor da atuação de Daniel – que também está em outra estreia da semana, “Romance Policial”, e de “A Estrada 47”, ainda em cartaz – e Caroline – que já ganhou o prêmio de melhor atriz no Festival do Rio por seu trabalho em “Se Nada Mais Der Certo” (2008).
Destaque-se também a admiração e culpa estampadas por Sandra e a masculinidade fragilizada em Rômulo, cuja interpretação foi premiada na última edição do Festival do Rio.
Assim, “Sangue Azul”, alusão ao costume da realeza –que se autoatribuía tal coloração sanguínea– de realizar casamentos consanguíneos para manter a pureza e obviamente o poder dentro da família, é também uma homenagem ao mar – vide o Netuno do circo e as menções a Iemanjá –, único lugar onde o pecado de amar dos dois é purificado.
A trama não é a única e, como todo trabalho de Lírio, serve de epicentro para um conjunto de personagens que a rodeiam e tem suas histórias pinceladas.
O roteiro dele, em parceria com Fellipe Barbosa, de “Casa Grande” (2014), e Sérgio Oliveira, descortina uma série de figuras humanas do circo, a “ilha dentro de uma ilha”, como a dançarina latina Teorema (interpretada pela cubana Laura Ramos), Inox, “o homem mais forte do mundo” (Milhem Cortaz, aproveitando as nuances diferentes de seu papel), e o atirador de facas Gaètan (um Matheus Nachtergaele que instiga o público a querer saber mais sobre o personagem), além dos nativos de Noronha.
Mas tal como nas apresentações circenses – ou na vida –, belamente capturadas na fotografia de Mauro Pinheiro Jr., premiada em Paulínia, os holofotes só pairam sobre eles momentaneamente.
É algo proposital, já que o cineasta já disse preferir as perguntas às respostas. Mas se o filme arrisca-se no salto, hesita por vezes no mergulho, especialmente no que diz respeito aos dramas humanos.
Ainda assim, apesar da câmera menos marcante do que em suas ficções anteriores, talvez seja o seu filme que mais fale sobre cinema e é eficiente nas reflexões que leva quanto a isso. E tal como a chegada do circo, “Sangue Azul” é aquela novidade que pode gerar no público as mais diversas reações, mas a indiferença não é uma delas.
Reuters
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