Por Mark Dowd
O Papa Francisco não é o primeiro papa a tratar de questões ambientais, mas é o primeiro a dedicar uma encíclica a elas. Combater as alterações climáticas não é apenas uma questão de justiça e sobrevivência humana, mas um ato de fé na criação do mundo de Deus.
Laudato Si é a encíclica papal mais aguardada nas últimas décadas. Poder-se-ia pensar que Francisco é o primeiro papa a colocar o cuidado da criação no centro da vida da Igreja. Nem tanto.
Os seus dois antecessores tiveram muito a dizer sobre o assunto. O Papa João Paulo II falou, em 2001, da necessidade de uma “conversão ecológica” por parte da humanidade, enquanto que as alocuções regulares do Papa Bento XVI sobre o assunto estiveram tão presentes que foi chamado de “o papa verde”.
Mas essas mensagens ficaram registradas em documentos de menor importância, fazendo que muitos católicos simplesmente o ignorassem. Isso não acontecerá mais. Ao dedicar toda uma encíclica sobre a relação conturbada da humanidade com a criação divina, o Papa Francisco está rompendo com o que o precede.
E tal encíclica vem sem nenhuma surpresa. A sua escolha do nome “Francisco” e a repetida observação de que “as pessoas às vezes perdoam, mas a natureza nunca” já mostravam que o meio ambiente seria uma aposta segura como tema central de uma encíclica.
E o momento em que é publicada não é nenhuma coincidência. Francisco declarou publicamente que quer que o mundo tome conhecimento do seu conteúdo antes da cúpula da ONU sobre as mudanças climáticas em Paris no mês de dezembro. Esta sua intervenção será música aos ouvidos dos bispos católicos em regiões do mundo que já sofrem com a degradação ambiental. Ainda em 1988 os bispos das Filipinas emitiram uma carta pastoral que condenava “uma agressão à natureza, que é pecaminosa e contrária aos ensinamentos de nossa fé”.
Quando se leva em conta que metade das paróquias de Manila encontram-se abaixo do nível do mar, pode-se entender por que o cuidado da criação tem estado no topo da lista de prioridades dos bispos filipinos. Mas a verdade é: a Igreja institucional raramente esteve na vanguarda dos protestos contra os danos causados pelo homem ao meio ambiente. Muitíssimos católicos acreditavam que “a Igreja veio para salvar almas, e não outra coisa”.
Uma abordagem antropocêntrica colocava o assunto nos seguintes termos: “A humanidade pode sobreviver aos piores efeitos das mudanças climáticas?” Assim, a CAFOD [organismo da Igreja Católica britânica para o desenvolvimento internacional] põe a crescente ameaça de secas, fome e inundações principalmente como uma questão de justiça. Ela ressalta que os perpetradores vivem protegidos no mundo industrializado, enquanto as vítimas vivem em sociedades com baixas emissões de carbono, historicamente.
Levantar a questão da justiça é um objetivo louvável, mas não é tudo. Consideremos estas palavras do Papa Francisco na Evangelii Gaudium: “Pela nossa realidade corpórea, Deus uniu-nos tão estreitamente ao mundo que nos rodeia, que a desertificação do solo é como uma doença para cada um, e podemos lamentar a extinção de uma espécie como se fosse uma mutilação”.
Devemos alçar a nossa rede para além da sobrevivência humana bem como lutarmos pela justiça entre os países em desenvolvimento e os países desenvolvidos, ou entre esta geração e as gerações vindouras. Olhemos para o Relatório Planeta Vivo, compilado anualmente pelo Fundo Mundial para a Natureza – WWF (na sigla em inglês) e outros organismos internacionais. Este documento apresenta uma situação desconfortável. Em apenas duas gerações, os tamanhos populacionais de mais de 10 mil espécies de vertebrados caíram pela metade. A taxa de extinção histórica e a perda de habitat entre as centenas de milhares de outras espécies de animais e plantas é a mais elevada do que em qualquer outro momento na história.
Então, não é surpresa alguma que a nova encíclica tenha as seguintes palavras como subtítulo: “Sulla cura della casa commune”, que se traduz como “Sobre o cuidado da nossa casa comum”.
Existe alguma maneira de reverter esta situação? Como católicos, a nossa primeira prioridade deve ser a de ter o meio ambiente como uma prioridade teológica urgente. Alguns manifestaram temores com o “ecocentrismo”, que transformaria a própria terra no foco de adoração. Em contraste, uma abordagem teocêntrica sustenta que Deus se espelha na sua criação, e que no relato de Gênesis, “ruach”, “sopro” divino, é a força que mantém juntos os ecossistemas frágeis.
Resistindo um dualismo maniqueísta entre espírito e matéria – um bom, outro mau –, devemos ter presente o dizer no final de cada dia do relato bíblico sobre a criação: “Deus viu tudo o que havia feito, e tudo era muito bom”. Depois do dilúvio, somos informados de que Deus fez a sua aliança não apenas com os homens e mulheres, mas com “todos os seres vivos na face da terra”.
É por isso que alguns, como Dom Angelo Enemesio Lazzaris (de Balsas, no nordeste do Brasil), têm discutido a ideia de que talvez tenhamos de alargar a noção de “direitos” aos recursos naturais, tais como os rios, as florestas e as espécies ameaçadas. Antes de qualquer coisa, lembre-se de que fomos exortados a nada menos do que uma “conversão ecológica”.
Uma iniciativa criada em 2002 pela Conferência dos Bispos da Austrália, chamada “Catholic Earthcare”, não se centra apenas na questão da justiça entre países ricos e comunidades pobres. Em sua missão, ela apresenta uma visão mais ampla com a proclamação: “O planeta é sagrado”. A Igreja Católica na Inglaterra e no País de Gales não tem nenhum organismo equivalente.
E da terra que deu origem à Revolução Industrial, quais são os sinais de vanguarda? Se os bispos deste país tivessem dedicado um quarto da energia para o tema da próxima encíclica papal, da mesma forma fizeram no passado com o casamento gay ou com as novas traduções do missal, poderíamos ter feito um bom progresso no sentido de tal conversão ecológica.
É um fato, mas muitas vezes os bispos fazem a frente e as paróquias tendem a seguir. Em junho de 2015, apenas 19 das mais de 3 mil paróquias católicas receberam o “Live Simply Award”, prêmio da CAFOD para a introdução de medidas sustentáveis, tais como a energia solar, a restrição do uso de automóveis, práticas de comércio justo e a utilização de teologia da criação na prática litúrgica.
Não devemos nos enganar, pensando que atividades paliativas como não mais usar sacos plásticos e trocar lâmpadas incandescentes por outras mais sustentáveis serão suficientes para alterar o curso da degradação ambiental.
Precisa-se de um líder religioso profético para fazer pela proteção do meio ambiente no Reino Unido aquilo que Trevor Huddleston fez pelo movimento do apartheid nas décadas de 1960 e 1970. Eu suspeito que muitos temem em falar ousadamente sobre o assunto, para não chamarem a atenção dos meios de comunicação de forma que não comecem a focar sobre os estilos de vida eclesiásticos. Depois de fazer o filme “Uma Verdade Inconveniente”, Al Gore sofreu uma perseguição constrangedora nas mãos da imprensa por causa de sua enorme casa no Tennessee. Porém, como disse Dom James Jones, ex-bispo anglicano de Liverpool: “Você não tem que ser um santo completo para ter o direito de emitir juízos fundamentados sobre a virtude”.
Outros bispos podem temer o aumento no uso do termo “população”. Embora seja verdade que um planeta de quatro bilhões de seres humanos exerceria uma menor demanda no planeta do que uma população de oito bilhões, quantidade mundial prevista para 2050, há uma resposta convincente: o consumo. Uma família média dos EUA com duas crianças vai consumir tantos recursos do mundo quanto uma família queniana de trinta membros ou mais.
Em um recente jantar em Londres, o ex-presidente da Shell, Mark Moody-Stuart, que passou 39 anos na empresa petrolífera, defendeu o desinvestimento nas empresas de combustíveis fósseis como a forma mais racional daqui para a frente. “Se você acha que o seu dinheiro pode ser usado em outro lugar, você deve seguir em frente e apostar na troca”, disse ele. “O desinvestimento seletivo ou um portfólio de mudanças é, na verdade, o que os investidores deveriam estar fazendo”. Centenas de instituições já começaram, incluindo algumas das principais instituições educacionais, como a universidades de Stanford e Glasgow. Não é chegada a hora de os nossos líderes eclesiais desinvestir no segmento petrolífero, de carvão e gás e incentivar o seu rebanho a fazer o mesmo?
A mercantilização da natureza se tornou uma parte aceita da narrativa humana, mas estamos consumindo muito rapidamente o ventre que nos sustenta. O teólogo jesuíta canadense Bernard Lonergan escreveu certa vez: “Muitas vezes, a Igreja chega um pouco sem fôlego e um pouco tarde”. A encíclica Laudato Si será publicada na próxima semana. Esperemos e rezemos para que o líder do menor Estado-nação na terra possa, ainda, dar um contributo decisivo.
The Tablet, 11-06-2015.
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