terça-feira, 28 de julho de 2015

Do serviço de "governar"

Quando é o poder a fascinar, fica desfigurado o sentido de governar.

Por Dom José Antônio Peruzzo*
O título faz pensar em reflexões de natureza política. Mas não pretendo fazer análises desta ordem. Já existem muitas. Algumas são excelentes, melhores que as de um religioso. Todavia, em tempos políticos tão conturbados, fortemente assinalados por confrontos e disputas, em tempos em que a incerteza projeta luzes escuras sobre a realidade próxima e, talvez, também a futura, quando a conflitividade ideológica parece encontrar muitos ecos, talvez a recordação simples do que seja “governar” nos ajude a pronunciar, e também selecionar, aquelas palavras que valem mais do que o silêncio.
A abordagem pode partir de muitos matizes. Como esta coluna tem um caráter pastoral, então a opção parte da sabedoria bíblica. Mas antes gostaria de uma rápida passagem pela etimologia. Governar é o oficio de gerir, de administrar, de coordenar as decisões atinentes ao bem comum. Mas a palavra tem uma origem bastante ilustrativa. No grego antigo o verbo, tomado da linguagem náutica, significava dirigir o leme do barco, ou conduzir um navio para uma determinada direção ou porto. Portanto, havia metas e objetivos que interessavam a todos os que estavam na embarcação. Houve uma evolução do sentido da palavra: desde o governo de um navio para o governo de um povo.
Não parece difícil perceber que, em seu sentido originário, a palavra governar refere-se muito mais a serviço do que a poder. Ou melhor, o segundo somente tem sentido se promover o valor do primeiro. Mais: se não houver uma boa governança, toda a embarcação, especialmente as pessoas, perde o rumo. E todos os caminhos estão errados para quem não sabe aonde vai. Crescem, então, as disputas, multiplicam-se as acusações e todos pretendem inocência.
Ainda sobre “governar”, quem quer incluir uma perspectiva ética inspirada na fé cristã pode tomar alguns subsídios na palavra do evangelho do último domingo (26). No texto de João 6, 1-15, vemos Jesus atento a uma séria problemática do povo: a necessidade de pão (cf. 6,5). Vale aqui lembrar que no horizonte bíblico o pão não é apenas uma referência à saciedade física de alimento. O pão está associado àquilo de que um povo precisa para percorrer seu caminho e sua história de liberdade. Não é apenas assistência, é também “governo”, isto é, conduzir em direção a bons destinos.
No caso do evangelho, o que encontramos em Jesus é a intenção límpida de possibilitar ao povo o que necessitava para seguir seu caminho, sua história. Não havia outro interesse. Punha-se no lugar de servidor. Mas o que chama a atenção é a escolha de Jesus após ter atendido a multidão. Queriam “proclamá-lo rei”. Ora, para aquela época um rei tinha as mãos sobre tudo e sobre todos. Isso faz lembrar poder, prestígio, grandeza, força sobre outros. Quando é o poder a fascinar, fica desfigurado o sentido de governar.
É por isso mesmo que a escolha de Jesus foi uma outra. Não quis dominar a ninguém. Recolheu-se a sós para uma montanha. O monte não é uma mera referência espacial. O lugar alto quer se referir a um nível superior; é a condição do homem livre, que é soberano sobre si mesmo a ponto de dispensar-se de ambições. Ele, o Senhor, não se serviu do pão oferecido para submeter aqueles que o seguiam. Fez-se servo para libertá-los. Quando faltam essas disposições, até os bons projetos políticos ensejam muitas confusões.
CNBB 27-07-2015
*Dom José Antônio Peruzzo é arcebispo de Curitiba (PR).

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