Como diria Hanna Arendt, 'raciocinar é o começo da libertação do homem rumo a uma vida própria'.
Por Lev Chaim*
Ao revirar o meu baú antigo, encontrei um caderno com alguns escritos meus. Quanto mais lia, mais estupefato ficava. Para que não digam que esteja exagerando, vejam este aqui, escrito logo após a morte do pai de um grande amigo:
"Os meus pais, apesar de amorosos, nunca leram histórias para mim quando pequeno. Mas a irmã mais velha de um amigo, sim. Ela contava histórias para a gente, enquanto dávamos um tempo para entrar na piscina, logo após o almoço. Não se nadava com barriga cheia".
Eram histórias pouco comuns, admito. Não tinham fadas e nem bruxos, mas filósofos que ela chamava de amigos sábios: Sócrates, Epicuro, Vírgilio e muitos outros. Se alguém me perguntasse se entendíamos tudo, com certeza, diria que sim e até que gostávamos. A irmã desse amigo disse que os sábios sempre tinham uma caixinha de remédios para todos os males.
Nunca me esqueci de um dia, em que estávamos em um grupo de 4 meninos em sua casa, de 6 a 8 anos de idade, eu próprio com oito. Foi naquele dia que confessei que havia ficado muito triste com a morte do pai de um grande amigo. Foi o primeiro velório que participava e fiquei gelado frente ao caixão, com medo do morto se mexer.
Ela, calma, pegou um livrinho e começou a ler. Olhe, esta é de um grande ateniense que viveu no século IV a.C., que se chamava Epicuro de Samos. ‘Este sábio senhor, disse ela, avisou que não há sentido ficar com medo ou se preocupar com a morte, pois nunca a vamos encontrá-la. Se ela existe, então o homem não existe mais. Não sabemos e nem teremos sentimento para explorar isto.’ No final, ela perguntou: ‘Entendeu Lev?’
Com os olhos esbugalhados, virei-me pra ela e disse: ‘Mas, nunca fomos à Lua e no entanto sabemos que ela existe. Nunca morri, mas o pai do meu amigo sim e eu o vi, ali no caixão’. Foi ai que ela soltou uma gargalhada estranha que me fez sentir o mais burro de todos e fugir para casa.
Ela correu atrás e pegou-me pelo braço já na calçada e disse: “Lev, eu ria de alegria, pois foi a primeira vez que alguém me colocava algo que não sabia a resposta. A sua pergunta está correta e foi baseada em sua própria experiência de vida”. Neste momento, decidi retornar com ela à sala.
Todos estavam em silêncio, apreensivos. Ai, ela disse em alto e bom som: ‘A pergunta do Lev foi muito interessante e temos que ler mais Epicuro para saber se ele próprio tem a resposta. Certo?’ A animação voltou ao grupo e ela retomou a palavra.
‘Para a pergunta do Lev, de que sempre vamos ter que deparar com a morte dos outros, Epicuro teria lembrado que o grande segredo da felicidade é o controle dos medos e dos desejos, para poder alcançar a felicidade plena. Isto, ele denominou de estado de “ataraxia”, que representa o prazer estável, o equilíbrio e a ausência de perturbações. Portanto, ao depararmos com a morte de um outro, temos que procurar nos concentrar nos bons momentos’, disse ela.
Naquela hora, aparentemente, tudo foi resolvido. Quando pintasse coisa ruim, pensar imediatamente em outra coisa boa. Mais tarde, quando voltei a reescrever estas linhas e pensar novamente no assunto, questionei a resposta daquela sábia irmã de meu amigo. E, orgulhosamente, posso dizer que encontrei a resposta para o medo, frente ao caixão, daquele meu primeiro velório.
Foi uma questão de empatia. O meu medo não era do morto, mas do que pudesse acontecer com o meu próprio pai. Isto era o verdadeiro foco que me havia deixado tremer nas bases. A partir dai, você pode ir mais longe: o meu amigo deve estar estarrecido com a perda do pai. A minha empatia para com a situação dele, de imaginar o que ele estaria sentindo, levou-me a ajudá-lo.
Ai, o jovem descobriu a pólvora: ter empatia para com a situação do próximo é a forma mais próxima da felicidade plena de um ser humano sem qualquer resquício de egoísmo. Ou seja: ajudar o outro ajuda a si próprio.
Quando terminei de ler tudo isto, pude comprovar que já bem cedo aprendi uma coisa importantíssima: “raciocinar é o começo da libertação do homem rumo a uma vida própria”, tal qual disse a grande filósofa alemã, Hanna Arendt.
E já que estamos no assunto filosofia, Epicuro – o filósofo grego, confesso o meu total estado de felicidade com o acordo alcançado pela Europa e Grécia.
*Lev Chaim é jornalista, colunista, publicista da FalaBrasil e trabalhou mais de 20 anos para a Radio Internacional da Holanda, país onde mora até hoje. Ele escreve todas as terças-feiras para o Dom Total.
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