Francisco abraça a cultura jesuíta e prega a ideia revolucionária do amor ao próximo.
Por Mino Carta*
O reformador Bergoglio recupera a palavra de Cristo e o valor da Caridade, que se tornaram letra morta em largos momentos da história da Igreja.
Papa Francisco é hoje em dia o único grande estadista de dimensões mundiais, reformador determinado, corajoso, inspirado. Óbvio nele o propósito de reparar os males provocados à Igreja Católica pelos pontificados de João Paulo II e Bento XVI, dignos da politicagem e da devassidão das cortes papais da Renascença e responsáveis por uma conspícua evasão de fiéis. A par disso, entretanto, é ele quem se ergue contra o que define como a “ditadura sutil” imposta à humanidade pelo poder do dinheiro, para aprofundar vertiginosamente o abismo entre ricos e pobres.
Ao escolher seu nome no momento de tomar assento na cadeira de Pedro, o jesuíta Bergoglio deu um claro indício dos rumos desejados para sua ação, como se a cultura própria da ordem de Inácio de Loyola se aliasse ao despojamento cristão do Pobrezinho de Assis, para assinalar o retorno à palavra de Cristo, pregador do amor ao próximo como fonte da igualdade, ideia revolucionária illo tempore até o nosso presente.
Como escreveu Ronald A. Knox em seu Enthusiasm, a Chapter in the History of Religion, a crença de que “o primeiro período da Igreja foi uma idade do ouro” revelou-se bastante questionável. De fato a pretensão de manter intacta a lição de Cristo foi frequentemente geradora de desvios e equívocos, cismas e heresias. De certa forma, papa Francisco, como Paulo de Tarso, emite sua Epístola aos Coríntios (nada a ver com os torcedores corintianos), sobretudo na passagem que diz respeito à Caridade, a mais importante entre as virtudes teologais.
Corinto no século I era cidade do mais desbragado meretrício, mesmo entre os católicos a licenciosidade dominava, e o ex-soldado fulgurado por um raio divino a caminho de Damasco cuidava de colocar no bom caminho a sua grei. As questões que a Epístola de Paulo levanta são distantes das atuais, mas a Caridade é invocada com energia, e a virtude se coaduna à perfeição com a pregação de Cristo.
Paulo é figura controversa, como verdadeiro fundador de uma Igreja que ao longo dos séculos se afastou das ideias de quem a apoiou sobre uma pedra chamada Pedro, acabou por dividir com o Imperador do Sagrado Romano Império o poder do mundo, e assumiu até as feições de monarquia mundana depois da doação do Castelo de Sutri pelo rei longobardo Astolfo, no VIII século. Não foi por acaso que o papa coroou em Roma Carlos Magno imperador, e alguns dos seus sucessores, e humilhou outro, Henrique III.
O papa tornou-se dono de toda a Itália central, impediu a unificação do país e a criação de um Estado Nacional até a segunda metade do século XIX, e, sempre que se sentiu ameaçado, não hesitou em pedir socorro aos reis europeus e seus exércitos, de sorte a garantir a divisão da península. A palavra de Cristo foi letra morta, em benefício do mais duradouro poder temporal por direito divino em dois milênios.
Ao cuidar de sua grei, papa Francisco tem de redimir a Igreja dos seus pecados, e neste sentido há de se mover sua modernização, para o entendimento das dinâmicas desencadeadas pela melhor compreensão da natureza e da evolução humana ao sabor do conhecimento. E ainda, e sempre, pela tolerância, mais ainda, pela misericórdia, na medição dos limites do ser humano, de resto determinados pelo Criador, segundo quem acredita, e tão pouco respeitados por quem até ontem mandou urbi et orbi.
Com Francisco, ocorre o retorno à ideia da igualdade, contra o neoliberalismo em pleno vigor e contra a miséria que resulta dele, em proveito da felicidade terrena de banqueiros, especuladores e rentistas, diante da passividade, ou mesmo da resignação de quantos haveriam de se opor. A viagem papal pela América Latina confirma e fortalece a postura do estadista, bem como a contrariedade daqueles que, além dos expoentes da Cúria Vaticana finalmente tirados de cena, a linha papal constrange e ameaça.
Um colunista nativo clama contra “a monstruosidade herética” com que Evo Morales, “protoditador da Bolívia”, presenteou “o argentino Bergoglio”: um Cristo “que suja as mãos com o sangue de 150 milhões de crucificados”. Mal sabe o colunista que em algum canto do Vaticano está guardado outro emblema vermelho.
Regresso súbito ao Brasil em 1961. Jânio renuncia e seu vice, João Goulart, é tido em odor de comunismo pelos senhores da casa-grande e por seu porta-voz, a mídia nativa, sempre alerta. Daí, fortes resistências, manu militari, à sua posse no posto abandonado. Ao cabo, desenha-se o compromisso e Jango assume à sombra do Parlamentarismo, pelo qual hoje se bate o senador José Serra. Um ano depois, Jango, juntamente com esposa e filhos, Denize e João Vicente, visita João XXIII, de muitos pontos de vista política e espiritualmente aparentado com Francisco.
Uma caixa de madeira forrada de veludo e ricamente entalhada é o presente de Goulart ao papa Roncalli. João Vicente, incansável na evocação da figura paterna, ouviu de Darcy Ribeiro uma história, publicamente divulgada em um livro (Invenção e Descaminho, Editora Avenir, 1978). Autor da caixa, o marceneiro Manoel, o qual, tempo depois da visita de Jango ao Vaticano, procurou Darcy, então chefe do Gabinete Civil da Presidência, e confessou, não sem candura: “No fundo da caixa, entalhei a foice e o martelo”. Comentaria Darcy, ao recordar: “Naquele palácio, o único comunista era mesmo Manoel”.
*Mino Carta, diretor de CartaCapital, em editorial publicado pela revista.
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