segunda-feira, 20 de julho de 2015

Para entender o fenômeno da crise

Em momentos de crise só o verdadeiro e substancial fica, o acidental e agregado desaparece.

Cabe um aprofundamento da crise para sairmos melhores dela.
Por Leonardo Boff*
Raramente na história houve tanta acumulação de situações de crise como no atual momento. Algumas são conjunturais e superáveis. Outras são estruturais e exigem mudanças profundas, como por exemplo, a reforma política e tributária brasileira. Mas há uma crise que se apresenta sistêmica e que recobre toda a Terra e a humanidade. Ela é ecológico-social. A percepção geral é que assim como a Terrra viva se encontra não pode continuar, pois pode nos levar a um quadro de tragédia com a dizimação de milhões de vidas humanas e de porções significativas da biodiversidade. Em sua encíclia sobre “o cuidado da Casa Comum” o Papa Francisco diz sem torneios: ”o certo é que o atual sistema mundial é insustentável a partir de vários pontos de vista”(n.61). Em sua peregrinação pelos países mais pobres da América Latina, Equador, Bolívia e Paraguai, o discurso de mudança estrutural e da exigência de um novo estilo de produzir, de consumir e de habitar a Casa Comum foi repetidamente afirmado como algo impostergável.
A crise sistêmica é grave porque ela carrega dentro de seu bojo a possibilidade da destruição da vida sobre o planeta e eventualmente o desaparecimento da espécie humana. Os instrumentos já foram montados. Basta que surja um conflito de maior intensidade ou um louco fundamentalista tipo o ex-presidente Bush para abrir as portas do inferno nuclear, químico ou biológico a ponto de não termos nenhum sobrante para contar a história. Não podemos subestimar a gravidade desta última crise sistêmica e global. A atual crise brasileira é um pálido reflexo da crise maior planetária. Mas mesmo assim é desastrosa para todos, afetando especialmente aqueles sobre cujos ombros se colocaram o maior ônus dos ajustes fiscais para sair ou aliviar a crise: os trabalhadores e os aposentados.
Comungamos com a esperança do Papa Francisco: há no ser humano um capital de inteligência e de meios que nos “ajudam a sair da espiral de autodestruição em que estamos afundando” (n.163). E finalmente há Alguém maior, senhor dos destinos de sua criação que é “o amante da vida” (Sb 11,26). Ele não permitirá que nos exterminemos miseravelmente.
É neste contexto que cabe um aprofundamento da natureza da crise para sairmos melhores dela. Desde o advento do existencialismo, especialmente com Sören Kierkegaard, a vida é entendida como processo permanente de crises e de superação de crises. Ortega y Gasset num famoso ensaio de 1942, com o título Esquemas das crises, mostrou que a história, por causa de suas rupturas e retomadas, possui a estrutura da crise. Esta obedece à seguinte lógica:
(1) a ordem dominante deixa de realizar um sentido evidente;
(2) reinam dúvida, ceticismo e uma crítica generalizada;
(3) urge uma decisão que cria novas certezas e outro sentido; mas como decidir se não se vê claro? Mas sem decisão não haverá saída;
(4) mas, tomada uma decisão, mesmo sob o risco, abre-se, então, novo caminho e outro espaço para a liberdade. Superou-se a crise. Nova ordem pode começar.
A crise representa purificação e oportunidade de crescimento. Não precisamos recorrer ao idiograma chinês de crise para saber desta significação. Basta nos remeter ao sânscrito, matriz de nossas línguas ocidentais.
Em sânscrito, crise vem de kir ou kri que significa purificar e limpar. De kri vem crisol, elemento com o qual limpamos ouro das gangas e acrisolar que quer dizer depurar e decantar. Então, a crise representa um processo crítico, de depuração do cerne: só o verdadeiro e substancial fica, o acidental e agregado desaparece.
Ao redor e a partir deste cerne se constrói outra ordem que representa a superação da crise. Ela se traduzirá num curso diferente das coisas. Depois, seguindo a lógica da crise, esta ordem também entrará em crise. E permitirá, após processo crítico de acrisolamento e purificação, a emergência de nova ordem. E assim sucessivamente, pois essa é a dinâmica da história.
A crise possui também uma dimensão pessoal, em várias situações da vida e a maior de todas: a crise da morte. A crise possui também uma dimensão cósmica que é o fim do universo que para nós não acaba na morte térmica, mas numa incomensurável explosão e implosão para dentro de Deus.
Entretanto, todo processo de purificação não se faz sem cortes e rupturas. Daí a necessidade da de-cisão. A de-cisão opera uma cisão com o anterior e inaugura o novo. Aqui nos pode ajudar o sentido grego de crise.
Em grego krisis, crise, significa a decisão tomada por um juiz ou um médico. O juiz pesa e sopesa os prós e os contras e o médico ausculta os vários sintomas da doença. À base deste processo ambos tomam suas decisões pelo tipo de sentença a ser proferida ou pelo tipo de doença a ser combatida. Esse processo decisório é chamado crise.
O Brasil vive, há séculos, protelando suas crises por faltar às lideranças ousadia histórica de tomar decisões que cortem com o passado perverso. Sempre se fazem conciliações negociadas a pretexto da governabilidade. Desta forma sutilmente se preservam os privilégios das elites e novamente as grandes maiorias são condenadas a continuar na marginalidade social.
A crise do capitalismo é notória. Mas nunca se fazem cortes estruturais que inaugurem nova ordem econômica. Sempre se recorre a ajustes que preservam a lógica exploradora de base, como ocorreu recentemente com a Grécia. Bem disse Platão em meio à crise da cultura grega: “as coisas grandes só acontecem no caos e na krisis”. Com a de-cisão, o caos e a crise desaparecem e nasce nova esperança.
Então se inicia novo tempo que, esperamos, seja mais integrador, mais humanitário e mais cuidador da Casa Comum.
Instituto Humanitas Unisinos 20-07-2015.
*Leonardo Boff, teólogo, filósofo e escritor.

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