Por Lev Chaim*
Logo que entrei na ruazinha de pedestres e vi a ambulância em frente à casa e galeria do pintor Elmer Gille, pensei o pior. Ele está doente, muito doente e vai morrer. Será que aconteceu? Apressei o passo e puxei o Pitu (meu cão) para que ele me acompanhasse mais rápido. Aquilo não parecia um bom sinal.
Pelo vizinho, soube que Elmer havia tido uma péssima noite e as agulhas do soro e dos remédios haviam se soltado. E o seu rim estava falhando. Quando este vizinho contou-me isto, lágrimas encherem seus olhos e os meus. Ele só foi com os enfermeiros para o hospital após eles terem lhe prometido que o trariam de volta ainda hoje. Foi isto que ele havia combinado com a esposa Dóris – ‘morrer em casa’, disse o vizinho dele.
É um casal excepcional. Nunca se queixam e há quase 12 anos que lutam contra esse câncer maldito que tomou conta do corpo de Elmer. Eles vieram da Alemanha Oriental, quando ela ainda existia, e escaparam juntos para o Ocidente, numa fuga espetacular pelas montanhas, para driblar os guardas da fronteira. Uma história que daria filme. E, desde então, eles vieram para Heusden, Holanda, e nunca mais se mudaram.
E já moram aqui há mais de quarenta anos e, nesta altura da vida, eles já se tornaram holandeses de passaporte, mas o sotaque alemão ainda perdura. Dois guerreiros. Dóris dá aulas de alemão em uma escola de línguas e Elmer é um pintor talentoso, esfuziante, colorido e cheio de vida nas telas. Suas paisagens da região italiana da Toscana são famosas. Eu tenho uma, justamente da casa que eles sempre alugavam para passar o verão e pintar.
Nas minhas voltas noturnas, a última da noite com o Pitú, quase sempre termino por aquela ruazinha, que fica bem próxima a minha casa. E quando passo pela casa de Elmer, que na maior parte das vezes está ainda iluminada, demoro um pouquinho na janela para admirar as suas pinturas alegres, profundas, de lugares e coisas, frutas e, cada vez, descobrir novos detalhes.
Quantas vezes não fiz isto e de repente, do outro lado da rua estreita, uma porta se abria e Elmer, com o cachimbo na boca, vinha em minha direção. “Boa noite, tudo bem?”, era como ele iniciava a conversa. “Oi Elmer, tudo bem. E com você?” “Tudo ótimo; terminamos uma partida de cartas, fumo um cachimbo antes de dormir”.
A casa em frente era também sua e faz parte de seu atelier. E é ali que, muitas vezes, a noite, via Elmer jogar baralho com os amigos. Aquela cena, ao redor do pátio aberto, com a oliveira plantada bem no centro, fazia bem à alma e a minha noite terminava tranquila. A cidade é pequena e todos, de uma certa forma, notam tudo e tomam conta um dos outros, em silêncio, gentilmente. Naquele dia, Elmer estava contente. Havia voltado a pintar depois de semanas parado por causa da quimioterapia.
Há oito anos que moro em Heusden e há oitos anos que assisto os altos e baixos deste homem frágil, grisalho, forte de caráter e personalidade, munido de um gentileza incomum, encoberta por uma grande dose de timidez. Os seus amigos se revezam na partida que sempre acontece com três jogadores e mais o Elmer. E isto acontece duas vezes por semana. Quando um não podia, vinha outro, mas Elmer nunca ficava só, sem jogar.
Mas neste dia que vi a ambulância em frente a sua casa e as lágrimas nos olhos do vizinho, fiquei apreensivo. O dia só melhorou quando vi, à noite, a ambulância de volta à cidade. Provavelmente trazia Elmer para a casa. Fui até lá na esperança de poder dar um alô, mas ele dormia.
Pelos olhos de Dóris que o recebeu na porta e pediu para os que enfermeiros o levassem para o quarto, nos fundos, onde ele ficava nos últimos tempos para não subir as escadas, pude perceber o seu alívio e a sua tensão. Era como se seus olhos dissessem: “O meu companheiro de todas as minhas aventuras nesta vida está de volta à casa”. Foi um olhar de preocupação, mas sobretudo de amor, muito amor. Ela sorriu para mim e eu para ela.
Eram 11 horas da noite. Voltei para casa mais tranquilo. Lembrei-me de quando havia comprado o quadro de Elmer, que está agora em minha sala. Disse a ele que adorava pintura, mas que também gostava muito de ler. Ele contou a sua esposa e, na próxima vez que Dóris me encontrou na rua, ela me entregou um papel, que há dias ela carregava no bolso, caso me encontrasse.
Ali, estava uma sugestão sua de leitura: a autobiografia do autor alemão, crítico literário, Marcel Reich-Ranicki – ‘Minha Vida’. Eu o li, reli e está até hoje em minha cabeceira. Obrigado Dóris, obrigado Elmer. Foram estes pequenos gestos e muito silencio que fizeram com que amasse com ternura aquele casal. Ainda não foi desta vez que ele partiu de vez. Na minha cabeça cantarolava a linda interpretação de Joe Cocker, Everybody Hurts. Que Deus os guarde.
Logo que entrei na ruazinha de pedestres e vi a ambulância em frente à casa e galeria do pintor Elmer Gille, pensei o pior. Ele está doente, muito doente e vai morrer. Será que aconteceu? Apressei o passo e puxei o Pitu (meu cão) para que ele me acompanhasse mais rápido. Aquilo não parecia um bom sinal.
Pelo vizinho, soube que Elmer havia tido uma péssima noite e as agulhas do soro e dos remédios haviam se soltado. E o seu rim estava falhando. Quando este vizinho contou-me isto, lágrimas encherem seus olhos e os meus. Ele só foi com os enfermeiros para o hospital após eles terem lhe prometido que o trariam de volta ainda hoje. Foi isto que ele havia combinado com a esposa Dóris – ‘morrer em casa’, disse o vizinho dele.
É um casal excepcional. Nunca se queixam e há quase 12 anos que lutam contra esse câncer maldito que tomou conta do corpo de Elmer. Eles vieram da Alemanha Oriental, quando ela ainda existia, e escaparam juntos para o Ocidente, numa fuga espetacular pelas montanhas, para driblar os guardas da fronteira. Uma história que daria filme. E, desde então, eles vieram para Heusden, Holanda, e nunca mais se mudaram.
E já moram aqui há mais de quarenta anos e, nesta altura da vida, eles já se tornaram holandeses de passaporte, mas o sotaque alemão ainda perdura. Dois guerreiros. Dóris dá aulas de alemão em uma escola de línguas e Elmer é um pintor talentoso, esfuziante, colorido e cheio de vida nas telas. Suas paisagens da região italiana da Toscana são famosas. Eu tenho uma, justamente da casa que eles sempre alugavam para passar o verão e pintar.
Nas minhas voltas noturnas, a última da noite com o Pitú, quase sempre termino por aquela ruazinha, que fica bem próxima a minha casa. E quando passo pela casa de Elmer, que na maior parte das vezes está ainda iluminada, demoro um pouquinho na janela para admirar as suas pinturas alegres, profundas, de lugares e coisas, frutas e, cada vez, descobrir novos detalhes.
Quantas vezes não fiz isto e de repente, do outro lado da rua estreita, uma porta se abria e Elmer, com o cachimbo na boca, vinha em minha direção. “Boa noite, tudo bem?”, era como ele iniciava a conversa. “Oi Elmer, tudo bem. E com você?” “Tudo ótimo; terminamos uma partida de cartas, fumo um cachimbo antes de dormir”.
A casa em frente era também sua e faz parte de seu atelier. E é ali que, muitas vezes, a noite, via Elmer jogar baralho com os amigos. Aquela cena, ao redor do pátio aberto, com a oliveira plantada bem no centro, fazia bem à alma e a minha noite terminava tranquila. A cidade é pequena e todos, de uma certa forma, notam tudo e tomam conta um dos outros, em silêncio, gentilmente. Naquele dia, Elmer estava contente. Havia voltado a pintar depois de semanas parado por causa da quimioterapia.
Há oito anos que moro em Heusden e há oitos anos que assisto os altos e baixos deste homem frágil, grisalho, forte de caráter e personalidade, munido de um gentileza incomum, encoberta por uma grande dose de timidez. Os seus amigos se revezam na partida que sempre acontece com três jogadores e mais o Elmer. E isto acontece duas vezes por semana. Quando um não podia, vinha outro, mas Elmer nunca ficava só, sem jogar.
Mas neste dia que vi a ambulância em frente a sua casa e as lágrimas nos olhos do vizinho, fiquei apreensivo. O dia só melhorou quando vi, à noite, a ambulância de volta à cidade. Provavelmente trazia Elmer para a casa. Fui até lá na esperança de poder dar um alô, mas ele dormia.
Pelos olhos de Dóris que o recebeu na porta e pediu para os que enfermeiros o levassem para o quarto, nos fundos, onde ele ficava nos últimos tempos para não subir as escadas, pude perceber o seu alívio e a sua tensão. Era como se seus olhos dissessem: “O meu companheiro de todas as minhas aventuras nesta vida está de volta à casa”. Foi um olhar de preocupação, mas sobretudo de amor, muito amor. Ela sorriu para mim e eu para ela.
Eram 11 horas da noite. Voltei para casa mais tranquilo. Lembrei-me de quando havia comprado o quadro de Elmer, que está agora em minha sala. Disse a ele que adorava pintura, mas que também gostava muito de ler. Ele contou a sua esposa e, na próxima vez que Dóris me encontrou na rua, ela me entregou um papel, que há dias ela carregava no bolso, caso me encontrasse.
Ali, estava uma sugestão sua de leitura: a autobiografia do autor alemão, crítico literário, Marcel Reich-Ranicki – ‘Minha Vida’. Eu o li, reli e está até hoje em minha cabeceira. Obrigado Dóris, obrigado Elmer. Foram estes pequenos gestos e muito silencio que fizeram com que amasse com ternura aquele casal. Ainda não foi desta vez que ele partiu de vez. Na minha cabeça cantarolava a linda interpretação de Joe Cocker, Everybody Hurts. Que Deus os guarde.
*Lev Chaim é jornalista, colunista, publicista da FalaBrasil e trabalhou mais de 20 anos para a Radio Internacional da Holanda, país onde mora até hoje. Ele escreve todas as terças-feiras para o DomTotal.
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