Se o bom caminho é o do meio e o do desapego, ele é rodeado pelos abismos e tentações.
Por Fernando Fabbrini*
Entre tantas que conheço, existem duas fábulas zen que me inspiram de forma especial pela sua adequação aos tempos modernos. Acho que as li na adolescência, em meio àquela procura incansável que nos acometeu nos tempos do rock, mochila nas costas, comunidades alternativas e outras preferências hippies. Ambas têm a mesma moral, digamos assim, e nos despertam um suave sorriso e uma reflexão profunda – à moda das melhores fábulas zen dignas deste nome.
A primeira narra o sofrimento e a decepção de uma pobre mulher japonesa, dona de casa zelosa, que sonhava ter o lençol mais branco da aldeia. (Naquele tempo e naquele lugar não existia OMO, com certeza). Pois a mulher, no afã de sua lavação insana e permanente descobriu, frustrada, que quanto mais alvo ficava seu lençol, mais corria o risco de sujá-lo. Esfregava, esfregava, quarava ao sol; o pano ficava impecável por alguns minutos, mas... Logo seu olhar exigente descobria um cisco, um pontinho negro ou fiapo de cinza trazidos pelo vento.
Numa outra aldeia (também lá no Japão, suponho) morava um samurai. Mestre das artes marciais, também alimentava um desejo exótico: o de ser o orgulhoso proprietário do mais afiado katana do Japão. Se você não sabe, katana é aquela espada dos samurais, infalível no corte das cabeças dos inimigos – zapt! - ou indispensável no haraquiri honroso. Porém... Passava o homem pelo mesmo problema da dona de casa: quanto mais afiava e cuidava da espada, maior era o risco de que a arma perdesse o fio, de acordo com seu padrão extremado. Ao menor uso, já não estava mais à altura da perfeição imaginada pelo exigente guerreiro. Creio que foi com esse tipo de inspiração e sabedoria que os mestres zen trilharam o caminho do meio e deixaram-nos fábulas assim, aceitando o fato de que imperfeições, erros, altos e baixos – sujeirinhas no lençol e lâminas cegas, por exemplo – fazem parte obrigatória de nossa jornada. Se o bom caminho é o do meio e o do desapego, ele é rodeado pelos abismos e tentações de se agarrar ao excepcional, ao super-hiper-extraordinário.
Outro dia fiquei sabendo da história de uma atriz famosa – ambiciosa, milionária e de gosto refinado. Seu vasto acervo de conquistas incluía desde namorados, maridos e amantes (foram vários) – sempre homens jovens e belíssimos - passando pelas casas maravilhosas onde morou, cercada de quadros lindos, esculturas, roupas de grife, vinhos raros e demais mimos que o dinheiro farto pode comprar. Dizia a todos, com leviandade, que em torno dela não havia lugar para o feio ou o ruim. Não se tratava de uma coisa natural; era, ao contrário, um louco apego ao bonito. O tempo passou e trouxe as rugas, os males do corpo e as agruras da alma – essas inevitabilidades não muito belas. Desconheço se ela teve a oportunidade de ler O Retrato de Dorian Gray, mas sua história chegou perto do enredo de Oscar Wilde. Felizmente, alcançou um momento de lucidez: na carta final que deixou aos amigos, confessou que passara a vida em estado de escravidão, sem se dar conta. Disse, lamentando a sorte, que sua patrona e carcereira cruel se chamava beleza.
Como podemos ver, existem vários tipos de escravatura – desde as horrorosas até as bonitinhas, sem entrar na polêmica maniqueísta. Tatuagem, por exemplo, é um troço legal: saiu da marginalidade e alcançou o status de arte urbana contemporânea, quando feita com charme e criatividade. Porém – que me desculpem seus adeptos radicais – transformar o corpo num catálogo de tatuador – amostra completa de símbolos, cores, formas, deuses egípcios e toda a heráldica das casas reais da Inglaterra - me parece meio over. Alguém já disse que o limite que separa o lindo do horroroso é um fio de teia de aranha, quase nada. Com a mesma medida, temos a sutilíssima fronteira entre o eróticoe o vulgar. Por arrogância, apego ou exagero, pula-se além do tal fio da aranha e mergulha-se no território do grotesco.
A aranha tece a sua teia com ciência e perfeição. Mas, não se agarra a ela.
Entre tantas que conheço, existem duas fábulas zen que me inspiram de forma especial pela sua adequação aos tempos modernos. Acho que as li na adolescência, em meio àquela procura incansável que nos acometeu nos tempos do rock, mochila nas costas, comunidades alternativas e outras preferências hippies. Ambas têm a mesma moral, digamos assim, e nos despertam um suave sorriso e uma reflexão profunda – à moda das melhores fábulas zen dignas deste nome.
A primeira narra o sofrimento e a decepção de uma pobre mulher japonesa, dona de casa zelosa, que sonhava ter o lençol mais branco da aldeia. (Naquele tempo e naquele lugar não existia OMO, com certeza). Pois a mulher, no afã de sua lavação insana e permanente descobriu, frustrada, que quanto mais alvo ficava seu lençol, mais corria o risco de sujá-lo. Esfregava, esfregava, quarava ao sol; o pano ficava impecável por alguns minutos, mas... Logo seu olhar exigente descobria um cisco, um pontinho negro ou fiapo de cinza trazidos pelo vento.
Numa outra aldeia (também lá no Japão, suponho) morava um samurai. Mestre das artes marciais, também alimentava um desejo exótico: o de ser o orgulhoso proprietário do mais afiado katana do Japão. Se você não sabe, katana é aquela espada dos samurais, infalível no corte das cabeças dos inimigos – zapt! - ou indispensável no haraquiri honroso. Porém... Passava o homem pelo mesmo problema da dona de casa: quanto mais afiava e cuidava da espada, maior era o risco de que a arma perdesse o fio, de acordo com seu padrão extremado. Ao menor uso, já não estava mais à altura da perfeição imaginada pelo exigente guerreiro. Creio que foi com esse tipo de inspiração e sabedoria que os mestres zen trilharam o caminho do meio e deixaram-nos fábulas assim, aceitando o fato de que imperfeições, erros, altos e baixos – sujeirinhas no lençol e lâminas cegas, por exemplo – fazem parte obrigatória de nossa jornada. Se o bom caminho é o do meio e o do desapego, ele é rodeado pelos abismos e tentações de se agarrar ao excepcional, ao super-hiper-extraordinário.
Outro dia fiquei sabendo da história de uma atriz famosa – ambiciosa, milionária e de gosto refinado. Seu vasto acervo de conquistas incluía desde namorados, maridos e amantes (foram vários) – sempre homens jovens e belíssimos - passando pelas casas maravilhosas onde morou, cercada de quadros lindos, esculturas, roupas de grife, vinhos raros e demais mimos que o dinheiro farto pode comprar. Dizia a todos, com leviandade, que em torno dela não havia lugar para o feio ou o ruim. Não se tratava de uma coisa natural; era, ao contrário, um louco apego ao bonito. O tempo passou e trouxe as rugas, os males do corpo e as agruras da alma – essas inevitabilidades não muito belas. Desconheço se ela teve a oportunidade de ler O Retrato de Dorian Gray, mas sua história chegou perto do enredo de Oscar Wilde. Felizmente, alcançou um momento de lucidez: na carta final que deixou aos amigos, confessou que passara a vida em estado de escravidão, sem se dar conta. Disse, lamentando a sorte, que sua patrona e carcereira cruel se chamava beleza.
Como podemos ver, existem vários tipos de escravatura – desde as horrorosas até as bonitinhas, sem entrar na polêmica maniqueísta. Tatuagem, por exemplo, é um troço legal: saiu da marginalidade e alcançou o status de arte urbana contemporânea, quando feita com charme e criatividade. Porém – que me desculpem seus adeptos radicais – transformar o corpo num catálogo de tatuador – amostra completa de símbolos, cores, formas, deuses egípcios e toda a heráldica das casas reais da Inglaterra - me parece meio over. Alguém já disse que o limite que separa o lindo do horroroso é um fio de teia de aranha, quase nada. Com a mesma medida, temos a sutilíssima fronteira entre o eróticoe o vulgar. Por arrogância, apego ou exagero, pula-se além do tal fio da aranha e mergulha-se no território do grotesco.
A aranha tece a sua teia com ciência e perfeição. Mas, não se agarra a ela.
*Fernando Fabbrini é roteirista, cronista e escritor, com dois livros publicados. Participa de coletâneas literárias no Brasil e na Itália.
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