O julgamento das biografias não autorizadas possui um pano de fundo argumentativo diferenciado.
Por Marcelo Kokke*
A construção de argumentos e decisões está sempre apoiada em determinado suporte normativo ou pragmático e, em se tratando de decisões judiciais, não é possível, ao meu ver, deixar de ter em conta um necessário teor de razão prática que lhe é inerente. Mais importante que a análise do que se resta expresso em uma decisão, é compreender o teor do pano de fundo argumentativo, que lhe contorna e delimita as razões de argumento. Este é o ponto que pretendo abordar nestas linhas. O julgamento das denominadas biografias não autorizadas, proferido pelo Supremo Tribunal Federal na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4815, possui um pano de fundo argumentativo diferenciado ao que se tem como quase um lugar comum na argumentação jurídica que trata dos conflitos e confrontações entre princípios e regras.
O objeto direto de análise jurídica empreendida pela ação direta de inconstitucionalidade é a conformação normativa dos artigos 20 e 21 do Código Civil à Constituição da República, tendo em conta princípios de liberdade de informação e liberdade de expressão. Estes princípios são referidos, em argumentos desfavoráveis à abertura para as biografias não autorizadas, como contrapostos à vida privada, à intimidade, à honra do indivíduo e sua apresentação como senhor da própria imagem e história diante da coletividade.
A decisão do Supremo Tribunal Federal veio a consagrar que é inexigível o consentimento da pessoa biografada para que haja a publicação, tal como é desnecessária a autorização de pessoas coadjuvantes, envolvidas nos relatos da biografia. Entretanto, o Supremo concomitantemente abriu portas para que, se caracterizada violação de direitos por meio da biografia não autorizada, haja exigência de reparação pelos danos materiais, morais, à própria imagem, inclusive com o respectivo direito de resposta. Ao meu ver, tem-se aqui a adoção da mesma linha decisória já presente em julgamento do Supremo Tribunal Federal a respeito da Lei de Imprensa, proferido na ADPF n. 130.
Em ambos os julgados, houve um distanciamento do lugar comum da argumentação voltada para a ponderação ou sopesamento de normas sem um lastro orientador prévio, com toda sua implicação em termos de argumentação analítica. A saída fluída e pouco clara daqueles que remetem para a análise do caso concreto, na ponderação, não foi a opção escolhida. A publicação da biografia não autorizada, ou seja, a inexigibilidade de consentimento da pessoa retratada, não é algo a ser avaliado no caso concreto, não se dimensiona em ponderação a liberdade de expressão, a liberdade de informação, para com a intimidade e vida privada em cada caso. Longe disso, há um a priori de afirmação da expressão para, em eventual momento posterior, debater-se ou por em análise seu exercício em conformação ou não para com o uso legítimo e constitucionalmente amparado. Não pretendo entrar aqui na polêmica, complexa e um tanto quanto sombria questão de como se identificar este uso legítimo, até que ponto se faz defensável a exposição de determinados fatos e informações na seara pública em relação a uma pessoa determinada. O que pretendo enfatizar é a opção por um sistema de posição preferencial no tratamento decisório presente na ADI n. 4815.
O pano de fundo assumido no julgamento da ADI n. 4815 foi a posição preferencial dos direitos fundamentais relativos à informação e à liberdade de expressão. O que é esta posição preferencial? A posição preferencial está assentada nos pressupostos democráticos, sendo comumente utilizada nos argumentos da Suprema Corte dos Estados Unidos (preferential position), significando que, para o exercício de direitos fundamentais, há um necessário ponto de partida a garantir a abertura discursiva em sociedade, com dinâmica plural e crítica a permitir o próprio desenvolvimento da matriz democrática nas interações humanas.
A posição preferencial remete a uma tutela prévia (sem ponderação, sem proporcionalidade, sem razoabilidade que sejam indiferentes ao peso normativo abstrato prévio) do que se faz necessário para manter o núcleo duro de um regime comprometido com a democracia e o pluralismo em sociedade. A democracia é um ponto de partida não questionável. Por sua condição de ligação crítica e discursiva, a liberdade de expressão e a liberdade de informação são preferencialmente tuteladas em um regime democrático, ou seja, não podem sofrer um a priori de cerceamento. Parte-se do primado de que seu exercício é legítimo. Por isto sua posição é preferencial. O questionamento de abusos é posterior, pois a posição preferencial visa antes de tudo à manutenção do primado democrático da discursividade e não cerceamento da expressão.[1]
A compreensão do pano de fundo da posição preferencial retira o teor de equilíbrio prévio abstrato entre princípios, parte exatamente do inverso, parte do patamar de que há uma conformação de princípios e regras que é preferencialmente posta em suporte para que se mantenha o próprio substrato de continuidade das relações democráticas entre pessoas em uma coletividade plural e comprometida com a democracia. Afirmar a possibilidade das biografias não autorizadas é afirmar que a posição preferencial de dados direitos fundamentais foi assumida pelo Supremo Tribunal Federal, cuja linha decisória mostra-se em consonância para com outras Cortes que também assumem o mesmo pano de fundo argumentativo.[2] O julgamento do Supremo Tribunal Federal engaja uma diretriz argumentativa mais ampla como pano de fundo nas confrontações entre direitos: não se parte de uma análise de pleno equilíbrio prévio, a priori, para tomada do caso, pelo inverso, parte-se do pressuposto de que há uma preferência de proteção prévia às construções normativas que afetem a dinâmica operativa do regime democrático em uma sociedade plural.
Biografia
SÁNCHEZ, Pedro J. Tenorio. La liberdad de comunicación em Estados Unidos y en Europa. In. ReDCE. Año 10. Núm. 19. Enero-junio/2013. Págs. 271-309.
Chequer, Cláudio. Liberdade de expressão como direito fundamental preferencial prima facie. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011.
[1] “Para a doutrina dos direitos fundamentais preferenciais originada da Suprema Corte dos Estados Unidos, a preferência concedida a determinados direitos fundamentais não supõe uma prevalência absoluta de um direito fundamental quando comparado com outros direitos da mesma natureza, mas simplesmente lhes confere uma posição mais forte ou uma maior eficácia na hora de proceder ao balancing, à ponderação dos interesses em conflito. Desta forma, para essa doutrina, havendo colisão entre direitos fundamentais, se um dos princípios envolvidos no conflito for considerado preferencial, a solução do conflito se dará pela ponderação de princípios; todavia, no momento de se fazer essa ponderação, o prato da balança inicia a ponderação conferindo mais peso ao direito fundamental preferencial, situação essa que pode ser perfeitamente invertida diante das circunstâncias do caso concreto. Trata-se, em verdade, de uma preferência apenas prima facie, mas não de uma preferência absoluta entre direitos fundamentais.” (Chequer, 2011, p. 96-97)
[2] Em excelente trabalho sobre o tema, assinala o professor espanhol Pedro J. Tenoria Sánchez: “En nuestro país la prensa parece ejercer también ese papel, y esto nos exige preguntarnos si hay o hubo una Sentencia Sullivan en nuestra jurisprudencia; solemos atribuir la privilegiada posición de la prensa entre nosotros a que el Tribunal Constitucional la ha dotado de posición preferencial sobre los derechos que entran en colisión con ella, como honor, intimidad y propia imagen, y se justifica esa posición preferencial por su conexión con la democracia; pues bien, ya desde la STC 6/1981, de 16 marzo, nuestro Tribunal Constitucional venía subrayando la importancia de las libertades informativas para la democracia; y desde la STC 159/1986, del 16 diciembre, venía hablando de posición preferencial de la libertad de expresión; sin embargo, la incorporación de la jurisprudencia Sullivan a nuestro sistema se produce en la STC 6/1988, de 21 enero, casi 10 años después de la aprobación de la Constitución.” (Sánchez, 2013, p. 308)
* Marcelo Kokke é procurador federal da Advocacia-Geral da União, professor de Direito Constitucional da Escola Superior Dom Helder Câmara, mestre e doutor em Direito Constitucional, especialista em Processo Constitucional.
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