quinta-feira, 17 de setembro de 2015

Carta aberta para a Europa

Europa, não precisa me humilhar assim sendo eu uma criança, um adulto ou um velho.
Por Ricardo Soares*
Europa. Sempre achei que fosse um nome de mulher. Pois assim vou escrever essa carta para você. Como se fosse uma figura feminina. Moro longe. Lá no Oriente Médio ou na África que você ajudou a colonizar com métodos, digamos, nem tão civilizados. Imaginei que os seus erros fossem devido à pouca experiência, você ainda era historicamente nova quando tudo isso começou. Mas vi que não foi assim. Passaram-se os anos e você continuou errando.
Hoje Europa te vejo uma senhora de meia idade. E ainda muito atraente com suas promessas de um mundo melhor para nós do outro lado do planeta. Isso apesar das crises, dos desempregos, de uma legião de fascistas que começam a se articular de novo como se a Segunda Guerra Mundial não tivesse acabado há apenas 70 anos.
Queria mesmo ir correndo ao seu encontro. Achei que você queria saber o que eu penso, o que ainda posso fazer por você, já que tanto já fiz. Mas parece que não é assim. Você me evita, finge que não me vê. Diz que pretende ser minha amiga mas não me estende a mão.
Criança acabei por ficar na praia. Afogado mais triste do mundo, lavado nas águas salgadas de um mar que me regurgita. Você e o mundo se comoveram com a imagem mas não o bastante para fazerem de fato o que deve ser feito. Ou será que a culpa é nossa? A senhora e os americanos vem fazendo o que com a gente durante todos esses anos? Desculpe a comparação vulgar mas como dizem no Brasil “vocês chuparam a laranja e nos deixaram um bagaço e no bagaço”.
Criança encharcada, adulto faminto à deriva, velho sem eira nem beira. Somos tratados como cidadãos de últimas classes salvo honrosas exceções de alguns habitantes do seu imenso território que insistem – em meio a olhares de reprovação da maioria – em nos acolher, alimentar, agasalhar.
Europa, a senhora é ainda muito vistosa. E orgulhosa. Dizem que esqueceu do seu próprio passado, com seus muros vergonhosos que caíram mas não todos. E a senhora sabe ao que estou me referindo. Aos muros se somaram os solados, os cães ferozes, os drones, miseráveis mensageiros da notícia que covardemente e literalmente nos passam a perna e nos jogam no chão como se no chão nós já não estivéssemos.
Para a senhora ter uma ideia queria mesmo era ficar na minha casa. No rincão onde nasci, podendo estar perto do meu futuro e do túmulo dos meus antepassados. Mas como a senhora não ajuda a coibir os assassinos e ditadores sanguinários, como a senhora não se cansa de nos dar as costas depois de tanto ter tirado da gente, me resta fugir das bombas que caem em nossas cabeças tentando chegar perto de suas praias, seus mares, suas cidades onde saneamento básico existe e tem comida sendo jogada no lixo.
O mais curioso é que essas bombas que desabam em nossas cabeças são vendidas pela senhora mesmo e, lógico, pelos americanos, sempre eles senhores da guerra e do mundo. Louca vida né Dona Europa ? Vida bandida né Dona Europa ? Nossos caminhos são feitos de desencontros, desatinos, mas, convenhamos, somos nós que estamos sempre perdendo. Só me resta pois continuar tentando. Não me considero invadindo vosso território pois a senhora sempre invadiu os meus por centenas de anos a fio.
Não finja que não sabe do que estou falando. Quem tem frio, medo, cansaço e saudade do que ficou para trás somos nós e não a senhora e suas imperiais imposturas.
A essa altura está na cara que nosso amor não deu certo. Ok. Mas não precisa me humilhar assim sendo eu uma criança, um adulto ou um velho. Não me recuse um prato de comida, um guarda- chuva no meio dessa tempestade com vento que nem faço ideia de quando vai acabar. Europa, assim me despeço. Como se você fosse uma mulher. Um beijo cansado dos seus muitos imigrantes. 
*Ricardo Soares é diretor de TV, escritor, roteirista e jornalista. Foi cronista dos jornais "O Estado de S. Paulo", "Jornal da Tarde", "Diário do Grande ABC" e da revista "Rolling Stone'. Autor de sete livros. Co-autor de três peças teatrais, um longa e um curta metragem.

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