quarta-feira, 23 de setembro de 2015

‘Depois que meu filho Francisco morreu’

Por Letícia Murta*
Depois que meu filho Francisco morreu, com 38 semanas de gestação, um dia antes da data marcada para o parto, descobri a trombofilia, uma doença que deixa meu sangue mais coagulado do que o normal e em algumas situações, como a gravidez, isso se agrava. Eu poderia ter tido um AVC, uma embolia, um infarto. Mas o que tive atacou meu bem maior e meu pequeno filho foi privado de oxigenação, possivelmente por causa de trombos na placenta e no cordão. A gravidez fora mesmo negligenciada pelo obstetra que nos (des)acompanhou. Ele teria que ter notado os indícios de que não estava normal e ignorou. O que causa esta doença, no meu caso, é uma mutação. Uma mutante da dor. Diante disso, existe possibilidade de ter um filho biológico? Eu buscava respostas e tentava entender o que representa essa condição de mutante. Nesta altura, eu já havia conhecido um grupo com mulheres trombofílicas Oi e via que muitas tinham passado pelo mesmo que eu; e que outras tantas venciam a trombofilia com as chamadas "picadinhas do amor", as injeções de heparina, anticoagulantes que permitem fazer brotar a vida onde só se vê dor.
Enquanto eu chorava, eu caminhava. Enquanto me mandavam ler livros de auto-ajuda e espiritualismo barato (não, obrigada!) eu lia artigos científicos publicados pelo mundo e estudava, pesquisava, revirava tudo que pudesse me dar uma resposta REAL sobre o que aconteceu com meu filho e, ao mesmo tempo, nortear meus próximos passos. Eu tinha que saber onde estaria pisando. Paralelo a isso, outra luta a ser travada, a da fertilidade em si. Portadora da Síndrome do Ovário Policístico, não ovulo naturalmente todos os meses. Foi o que causou uma busca de dois anos pela gravidez do Francisco. E agora eu demoraria mais dois anos? Me recusei! Eu estava entre dar vida ou morrer, não é mesmo? Não poderia, e não queria, esperar mais nada.
Apenas um fio de esperança ainda restava em mim. E fui buscar, então, um tratamento para ajudar meu corpo a ser fértil. Ciente de todos os riscos que essa empreitada representava, topei iniciar a busca pela nova gravidez apenas três meses após ter passado por uma cesariana. E cinco meses após enterrar meu filho amado, eu consegui. Impossível não ter medo. Eu fui tomada por ele, jogada no chão. Sim, havia um outro bebê e ele sobreviveria? E eu suportaria ver um outro filho meu morto? Não! Desta vez eu morreria junto, jurei. Era minha última chance. Como um bicho, resolvi que chocaria em paz, em silêncio. Me preservei e contei para o mínimo de pessoas possível. E a gravidez progredia. Até que meu corpo pediu pausa. A dor do corte da cesariana se esticando, a exaustão emocional e física, a perturbação psicológica se uniram a um problema detectado em uma válvula em meu coração que estava realizando seu trabalho mal (mas que bela porcaria de corpo eu tenho!) e me deixando sem ar ao mínimo esforço. Fui afastada do meu trabalho antes de completar quatro meses de gravidez e, por isso, quem me viu até essa época nem sonhou que eu guardava um segredo e um tesouro.
Nessa altura, eu já brigava com a alimentação, cortando tudo, e mais um pouco, por causa da diabetes gestacional. Eu comia sem sal, sem açúcar, sem gordura, sem glúten. A água foi liberada, rs. Ah, tem também um hipotireoidismo controlado e um fator RH negativo, com sangue positivo do marido, e mais um ato negligente do dr. Monstro de não me vacinar após o parto do Francisco, colocando em risco outros filhos meus que poderiam ser considerados invasores neste corpo bichado, a chamada eritroblastose fetal. E o pulso ainda pulsa!
Contra nós, quase tudo, inclusive o preço dos medicamentos que eu precisava tomando e que, felizmente, teve GRANDE ajuda do primo de meu marido (salve, salve, Rodrigo! Gratidão eterna!). Pois bem, cama, remédios, exames, dois obstetras, ultrassom quinzenal, comida sem graça, monitoramento constante, choro, pânico e crescia em mim a vida. Por conta de tamanha monitoria, soube bem cedo (11 semanas, menos de três meses) que teria uma menina. Relutei um pouco a comprar lacinhos e fru-frus, mas, aos poucos, a pequena bailarina foi tomando conta do seu espaço em meu coração e no quartinho que havia montado para o irmão. Iolanda, foi o nome escolhido anos antes, junto com Francisco. A cada exame uma vitória: Iolanda crescia, engordava e ganhava força. E logo foi possível sentir esta força. Chutes me diziam constantemente: mamãe, estou viva!
O medo? Ah, esse passou a fazer parte de mim. Chorei TODOS os dias de minha gravidez, seja pelo luto recente e eterno de enterrar um filho, ou pelo pavor de pensar que a situação poderia se repetir. Mas eu precisava lutar e, desta vez, ser o que muitos acham que eu já nasci sendo: forte. Diante da morte do Francisco eu não fui forte. Não existe isso! Não escolhi viver aquilo. Mas com relação à Iolanda, eu precisava ser. Eu tinha colocado aquela pequenina na grande enrascada de sobreviver em meu corpo. Ela dependia de mim. E ela ia conseguir. Eu dizia a ela diariamente: lute daí que eu luto daqui. E da-lhe remédio! Tudo contra e o amor a favor. Mamãe Maravilha! Sou eu!
Iolanda chega com a única missão de ser. Ser o que quiser, apenas ser. E embora tenha papel determinante na vida de seus pais, ela não é tapa-buraco, restituição, substituta ou algo do gênero. É a nossa filha, a irmã do Francisco, e, como irmã, ocupa o espaço dela, jamais o dele. Ou alguma outra mãe precisa retirar um dos filhos para dar lugar ao novo? Iolanda, a nossa bailarina, nossa gatinha, nossa princesa, nosso raio de sol, nossa vida. Vencemos a Síndrome do Ovário Policístico, a trombofilia, o hipotireoidismo, o risco da eritroblastose fetal (pelo RH negativo), diabetes gestacional, refluxo da válvula mitral, corte da cesariana recente, medo, trauma, angústia, dor, tristeza, sufoco, caos, breu.
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*Letícia Murta é jornalista, mora em Belo Horizonte e mantém o blog http://www.eucurtosermae.com.br.

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