quarta-feira, 21 de outubro de 2015

Casamento ameaçado

O Mal é -- acreditem-- o Facebook, que teria provocado o crescimento do número de divórcios.
Por Reinaldo Lobo*
Casamento e religião estão unidos há muitos séculos, até que a morte os separe. Não é nada de novo. Já um livro de auto-ajuda evangélico -- "Casamento Blindado- O seu casamento à prova de divórcio"-- para administrar o "empreendimento" que é a vida dos casais significa, que eu saiba, uma novidade aqui no Brasil.
Quando seus autores, Renato & Cristiane Cardoso (apresentados assim mesmo, com o "&" de sociedade comercial), informam que venderam mais de 2 milhões de exemplares, pode-se dizer que essa obra é um fenômeno editorial. O sucesso vem acompanhado de um programa de TV, "The Love School - A Escola do Amor", que passa na rede evangélica do bispo Edir Macedo.
O casal globe-trotter viveu nos EUA e, possivelmente, aprendeu lá os métodos de ganhar dinheiro com auto-ajuda. Também morou em mais dois países e percorreu pelo menos 30 outros fazendo palestras, por vinte anos, para ensinar a performance do casamento "blindado" contra o Mal. Se é preciso "blindar" um casal é porque o vínculo é muito frágil diante dos "perigos" da sociedade moderna.
O Mal é -- acreditem-- o Facebook, que teria provocado o crescimento do número de divórcios. É também a independência excessiva das mulheres, sobretudo as jovens, que estariam traindo em grandes proporções, além das tentações da pornografia: segundo uma pesquisa norte-americana,  citada por eles, até mesmo 54% dos pastores cristãos viram exibições pornográficas nos doze meses pesquisados e uma outra revelou que, entre os fiéis cristãos nos EUA, 50% dos homens e 20% das mulheres na igreja eram viciados em pornografia.
A  dupla está  assustada com os "novos desafios" que "nenhuma geração antes conheceu", como a internet, as redes sociais, as novas tecnologias de comunicação, o celular, o MSN, o SMS, a proliferação da indústria pornô, o "avanço da mulher na sociedade" que a tirou da "bíblica submissão" ao homem, a facilitação do divórcio e outros fenômenos, como a mudança dos valores e dos gêneros no interior da família.
Dizem Renato & Cristiane e vale a pena citá-los literalmente:  "Mark Zuckerberg, criador do Facebook, é um dos maiores destruidores de lares na Grã-Bretanha. Segundo estudo divulgado pelo site especializado em divórcios Divorce-Online, o Facebook é citado como motivo de uma em cada três separações no país. Cerca de 1.700 dos 5 mil casos mencionaram que mensagens inadequadas para pessoas do sexo oposto e comentários de ex-namoradas (os) no Facebook foram causas de problemas no casamento. Em 2011, a Associação Americana dos Advogados Matrimoniais (AAML)  divulgou que o Facebook é citado em um de cada cinco divórcios".
O que Mark Zuckerberg tem exatamente com isso? Será que adiantaria dizer ao ilustre casal que os meios de comunicação em geral, não só o Facebook, apenas facilitaram o contato mais direto e rápido entre as pessoas? E que a decisão de usar esses meios virtuais para fins amorosos depende de cada indivíduo e de sua escolha?
A visão de mundo ameaçadora do casal parte do pressuposto de que o aumento da autonomia, sobretudo das mulheres, deixa todos expostos a uma tal fragilidade que os seus desejos e ações precisam ser controlados e educados, para que façam as "escolhas certas". As mulheres, desde Adão e Eva, levam a culpa.
Os direitos e a liberdade individual não contam, pois os seres humanos estariam sempre sujeitos ao Mal.  Há uma concepção de uma natureza humana maliciosa, incapaz e infantilizada por trás da "ajuda" oferecida por Renato & Cristiane. Pertence a uma pedagogia cristã, é verdade, mas fundamentalista e prescritiva.
A performance do casal exemplar aparece  como modelo de comportamento a ser aplicado para a salvação de todos, principalmente os que se sentem ameaçados pelas mudanças da sociedade contemporânea. Um detalhe curioso: apesar da tecnofobia dos pregadores moralistas, a grande maioria das citações bibliográficas do livro são de sites, blogs e twites. Prestam assim uma homenagem involuntária aos meios que abominam, reconhecendo que tudo depende do uso que se faz deles.Não há "imoralidade" do meio técnico, mas uma função comunicativa. E eles a utilizam para divulgar sua mensagem persecutória a fim de amedrontar e adestrar os casais.
A fórmula é bem simples. Basta evitar as tentações do mundo atual para que o Bem se instaure e advenha a Felicidade conjugal. Mas como evitar a atração do "pecado", mantendo intacto o elo conjugal? É aqui que entram as instruções preconceituosas.  Dona Cristiane se dirige às mulheres incitando-as a tomarem cuidado com  as amigas e as outras mulheres, pois representam o perigo de infidelidade do marido. O conselho é que, uma vez casada, a mulher deve voltar-se para a missão de suprir as necessidades do seu homem, não dando chance ao acaso. Não se pode "dar mole". Primeiro, a esposa precisa evitar manter amizades com mulheres em geral, as solteiras em particular. Deve ter o marido como o único, verdadeiro e melhor amigo -- diz ela.
Segundo, a mulher "naturalmente gosta desabafar, contar a razão de seus estresses para a amiga, a mãe, ou outra confidente. Aí está o perigo: revelar pontos negativos do marido para outras pessoas. Em vez disso, seja a embaixatriz de seu marido. Represente-o bem e reforce assim o respeito por ele".  Além disso, precisa descobrir as necessidades reais do marido, sejam estéticas, sexuais ou afetivas,para atendê-las prontamente. Mas deve evitar atividades sexuais "contra a natureza", como o sexo anal e quaisquer outras variações.
O que tem atrapalhado a mulher --diz a dupla de autores-- é se preocupar em estar bem de um modo geral, ocupando um lugar na sociedade e no trabalho, esquecendo-se de que o marido, segundo a Bíblia , é o líder a ser seguido. Mas esse líder tem que ser, como Renato, alguém que cuida e se preocupa com  seus liderados. Portanto, o homem deve cuidar bem da mulher.
Essa ética do senso comum não vê paradoxos na monogamia, que exige, é verdade, uma espécie de "fé" na sua própria existência, mas que implica sempre a presença da infidelidade e a existência de um terceiro. Dois formam um par. Para haver um casal -- pelo menos no plano do inconsciente-- é preciso três. O terceiro excluído é, ao mesmo tempo, a sombra incluída em todo casal. Quanto a maior a tentação de ceder ao outro fantasiado, maior deve ser a blindagem do casamento.
Qualquer  tipo de complexidade  escapa a essa ética maniqueísta.  O casamento é como uma "empresa" que precisa ser bem administrada , dizem os sócios Renato & Cristiane. E uma empresa  elimina seus concorrentes. Simples assim.
Os autores não se perguntam seriamente por que as pessoas "devem" permanecer juntas. O desígnio vem dos céus e do clichê : o amor tudo resolve. Cristo é amor. Cristo assim quer. O casamento não tem a História por trás e a família deve ser sempre a mesma, ainda que, de fato, venha mudando desde a Antiguidade.
Esse livro deve ser lido como um sintoma. É uma defesa paranóide mal construída contra o desamparo, a solidão e a perplexidade diante de um mundo em rápida mutação. Renato & Cristiane são a nostalgia da família patriarcal burguesa do século XIX, apresentada por meios modernos. Seu discurso tem a audiência cativa dos que entregam sua fragilidade à manipulação da "salvação" messiânica. E pagam por isso.
*Reinaldo Lobo é psicanalista e articulista. Tem um blog: imaginarioradical.blogspot.com.

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