Ainda a propósito do Sínodo ordinário dos Bispos sobre a Família que se concluiu domingo passado no Vaticano, vamos hoje ouvir na rubrica “África Global” uma entrevista realizada pelo colega italiano Fabio Collagrande com Lucetta Scaraffia, Professora de História Contemporânea na Universidade de Roma “La Sapienzia” e Responsável do suplemento mensal do jornal do Vaticano l’Osservatore Romano, “Mulher, Igreja, Mundo”. Ela foi auditora no Sínodo e nesta entrevista fala da sua experiência e visão sobre este Sínodo…
- Professora Lucetta Scaraffia, como foi a experiência de participar no Sínodo como auditora?
“De um certo ponto de vista foi uma experiência muito bela porque vivi de perto o facto de a Igreja ser realmente católica, mundial; tive realmente a sensação de tocar com mãos todas as culturas, sentir o cristianismo inculturado em todas as culturas com as diversas reacções que isto comporta, e isto é algo que se sabe, mas quando o se vê em acção, fica-se realmente com uma ideia muito mais concreta da dimensão mundial da Igreja.
Por outro lado, tive a sensação de ser inexistente porque nós, auditores, e auditoras sobretudo, não carimbávamos o cartão de presença como os padres sinodais, não tínhamos direito ao voto, pudemos falar um pouquinho só já para o fim do Sínodo, fazendo uma pequena intervenção. Nos grupos de trabalho, teoricamente, não podíamos falar, mas, na realidade, falamos; no entanto, não podíamos propor modificações e, de qualquer modo, não tínhamos direito ao voto. Era, portanto, uma experiência de ser inexistente.”
-Muitos sublinharam a paresia com que se desenvolveram os debates. O Papa disse: “demos prova da vivacidade da Igreja católica”. Concorda?
“Sim, concordo que foi um verdadeiro debate. Isto é, as pessoas diziam o que pensavam, mesmo com notáveis conflitos e opiniões muito diferentes. E isto significa vida, vivacidade. Quando todos dizem a mesma coisa, quer dizer que tudo está morto, não há espírito vivo; foi realmente como famílias. Nas famílias há litígios mas depois, põem-se de acordo. Foi um pouco uma experiência deste tipo.”
- Alguém falou da possibilidade de que se tratasse de um Sínodo pré-confeccionado!
“Não, não foi absolutamente pré-confeccionado. De resto, basta pensar no que se passava cá fora. Era um Sínodo muito vital, muito verdadeiro. E isto tocou-me porque, na verdade, não esperava que na Igreja houvesse uma semelhante liberdade de discussão.”
- Que atitude teve o Presidente do Sínodo, o Papa Francisco?
“Era uma atitude de humildade, atento, paciente, sempre pronto a ouvir, a não fazer pesar o seu papel, e isto via-se em pequenos detalhes, como por exemplo o facto de ele chegar sempre um pouco antes e de falar com todos; no intervalo para o café sinodal estava no meio das pessoas, com todos, quer dizer, era uma atitude muito humilde, muito gentil, de interesse, de verdadeira escuta.”
- Na sua opinião, que imagem de família emergiu do Sínodo?
“Olhe, infelizmente, diria que a relação com a realidade não é ainda a que deveria ser, na minha opinião, porque a imagem de família é ainda bastante abstracta. Não se fala, por ex., do facto de que estão em forte aumento os núcleos familiares - e são famílias essas também – compostos por uma mulher e pelos seus filhos. Em todo o mundo estão a aumentar porque a desintegração da família significa sobretudo isto: que são as mulheres que ficam com os filhos. Gostava muito que tivesse havido uma palavra de reconhecimento em relação a essas mulheres. Mas, continuou-se, pelo contrário, a falar de família sem ter em conta, digamos, um olhar de afecto e de piedade em relação ao esforço que fazem essas mulheres.”
- Há um parágrafo do Relatório final dedicado precisamente à mulher e em que se lê que uma maior valorização das responsabilidades da mulher na Igreja pode contribuir para o reconhecimento social do papel determinante que têm as mulheres e fala-se de maior espaço a elas nos processos de decisão, na governação de algumas instituições, envolvimento na formação de ministros ordenados… Considera isto um ponto importante?
“Sim, considero-o muito importante porque a Igreja compreende que não pode dizer aos esposos, aos maridos, para respeitarem as mulheres como seus pares quando a Igreja permanece um monolítico masculino. Dá um mau exemplo”
- Pode-se fazer mais neste sentido?
“Sim, claro, pode-se passar da palavra ao acto, digamos, com propostas, passar ao passo concreto que todos nós esperamos do Papa Francisco”
- Ao encerrar o Sínodo, o Papa disse que o Sínodo mostrou que os verdadeiros defensores da doutrina são aqueles que defendem a pessoa humana, não as ideias. Concorda?
“Concordo sim, absolutamente, porque esta defesa das palavras como se fossem dogmas, das interpretações das palavras de Jesus como se não fossem interpretações que devem ser revistas… quer dizer, não havia absolutamente a ideia de que o cristianismo é ele próprio um produto histórico que foi mudando ao longo dos séculos e que pode mudar ainda hoje.”
- O primeiro dever da Igreja – disse o Papa – não é o de condenar, mas sim o de promover, dar a conhecer a misericórdia. Há alguém que se sente incomodado com este sublinhar sempre o tema da misericórdia? Falo de uma Igreja que corre o risco de se tornar melosa, boazinha, que cede às lógicas do mundo. É difícil compreender o conceito de misericórdia, Professora Scaraffia?
“Parece-me que sim, porque o conceito de misericórdia quer substancialmente dizer tirar o poder às hierarquias eclesiásticas; a hierarquia tem poder enquanto diz “isto é pecado”, “isto não é pecado”, “aqui te absolvo”, “aqui não te absolvo”… a misericórdia é, pelo contrário, uma virtude que pode ser dada e sentida pelos leigos; perde, portanto, significado e poder, precisamente aquele elemento eclesiástico que se gostaria, pelo contrário, de manter”.
- No entanto, há muitos leigos que não conseguem compreender até ao fundo o conceito de misericórdia!
“Claro, talvez haja, certamente, porque têm medo e pensam que deste modo defendem o barco que está a afundar; sem pensar que o barco não afunda se tivermos presentes as bases do Evangelho, ou seja que Jesus disse que veio para os pecadores e não para os justos, para os doentes e não para os sãos.”
- O interesse dos media centrou-se quase exclusivamente no tema da comunhão aos divorciados-recasados. Como interpreta isto?
“Os media não compreendem ou não querem fazer o esforço de compreender, então procuram um pouco traduzir tudo em notícias que fazem um certo efeito. E essa tornou-se a notícia porque parece ir contra a indissolubilidade do matrimónio que é uma especificidade da Igreja católica e é um ponto não negociável, digamos. Diria, portanto, que há uma grande preguiça da parte de muitos jornalistas, que não têm vontade de compreender mais do que isso”.
- Acompanhamento, discernimento, integração. Estas são as três palavras-chave que encontramos nos parágrafos dedicados às famílias feridas. Que soluções escolheu a Igreja, o Sínodo, para se aproximar dessas realidades?
“A da integração, isto é, de as considerar parte da comunidade eclesial a todo o efeito. Não é que os pecadores têm de ser postos fora da comunidade. Os pecadores devem ser acolhidos com misericórdia e levados a arrepender-se. Mas deve-se também recordá-los que fazem parte da comunidade cristã. Somos todos pecadores… É como se apenas os divorciados recasados fossem pecadores…”
- De que forma se poderia contar em poucos segundos a uma pessoa que não sabe nada do Sínodo, ou a uma que só leu os jornais, aquilo que se passou no Sínodo?
“Dir-lhe-ia que se redescobriu que os Evangelhos nos falam sempre, que neles descobrimos sempre novos aspectos… redescobrimos que a mensagem fundamental de Jesus é a Misericórdia, é estar próximos dos pecadores e que quem se considera justo, na realidade não o é e há, portanto, que ter uma atitude mais misericordiosa, até porque todos temos necessidade de misericórdia, mesmo quem pensa não ter necessidade. É uma incitação à humildade, a um amor recíproco, a um ver o outro com olhar benévolo em vez de julgar.”
(DA e Fabio Collagrande)
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