sexta-feira, 22 de janeiro de 2016

A bonitinha e a celebridade

Ai! Aquele senhor doeu.
Por Fernando Fabbrini*
A mocinha ia sair de férias, verão na Bahia. Aliás, mocinha, mais ou menos, estou sendo modesto: acabara de completar dezoito anos, mas parecia já um mulherão, dona do próprio nariz – o qual, aliás, era perfeito como todo o resto, resultando num conjunto raro de belezas frescas. Quando embarcou no avião, todo mundo olhou. Rosto lindo, camiseta florida, shorts curtos, brincos, pulseiras, cabelos, unhas das mãos e dos pés sei lá como. Enfim: abusava daquele vasto arsenal que as mocinhas, as não tão mocinhas e as mulheres em geral sabem usar quando querem, com consequências devastadoras na turma dos barbados.
Passou pelas primeiras fileiras procurando o assento e chegou ao referido. Ajeitou a mochila no compartimento superior, pediu licença e acomodou-se na poltrona do corredor. Na da janelinha estava a celebridade, gênero masculino, meia idade já avançada, cabelos bem grisalhos. Simulando anonimato, a celebridade usava óculos escuros e roupas esportivas elegantíssimas. Um perfume suave de shampoo alcançou seu nariz grande; vinha dos cachos louros ao lado. Desviou o olhar da revista que lia – em inglês – e discretamente deu uma geral de alto a baixo na acompanhante recém-chegada. Nossa! Empinou-se na poltrona, consultou o Rolex no pulso, fingiu novamente tédio e indiferença.
A mocinha linda botou seus fones assim que a aeronave decolou e ficou escutando o One Direction. A celebridade aguardou até que os avisos luminosos se apagassem e puxou assunto:
- Tudo bem?
A bonitinha não entendeu que era com ela. Estava ouvindo o IPhone, ué. Ele insistiu, agora curvado e torcido para frente, olhando-a direto nos olhos com cara de tacho:
- Oi... Tudo bem?
Surpresa, ela destampou os ouvidos, sorriu timidamente e respondeu ao cumprimento.
- Oi...
A celebridade engatou a conversa, com a experiência malévola de um homem grisalho de meia idade avançada:
- De férias?
- É... Vou pra Bahia com umas primas. E o senhor?
Ai! Aquele senhor doeu. Mas era inevitável e fez com que a celebridade tomasse consciência do abismo cronológico que existia entre as poltronas 17J e 17H. Recuperou-se e assumiu ares de gente famosa:
- Vou pro Recife, fui convidado para uma mostra sobre meu trabalho, uma homenagem...
- Ah, tá – disse ela, sem fazer a menor ideia de qual trabalho aquele velho grisalho se referia. E continuou a ouvir o One Direction, muito na dela. A celebridade não se conformou. Fez uma pausa estratégica, tirou os óculos de maneira displicente – mas proposital – e voltou à carga:
- Você não está me reconhecendo?
- Hã? Não, senhor...
Pausa dramática. “Impossível” resmungou a celebridade com seus botões de madrepérola na camisa de linho egípcio tom pastel verão tropical. A situação era grave. Optou pelo ataque frontal, descarado, canalha:
- Sou fulano – disse o nome, a sorrir.
A linda continuou com sua cara de bobinha. Nunca tinha ouvido falar. Por educação, ou para ficar livre daquele homem de nome esquisito, fez que reconheceu.
- Ah... Tá.  Sou a Renata, prazer...
Não poderia piorar, mas a mocinha deu um jeito, só por gentileza:
- O senhor é .... Tipo artista, né? Faz o quê, mesmo?
- Bem... Já fiz muita coisa. Fui o criador do... E disse o nome do personagem.
- De quem?
Ele repetiu. E mais: debulhou a lista de sua sinfonia de façanhas, com solos de vaidades regidos por um ego de casaca e batuta, como numa orquestra.
- Ah, tá.
Continuou na mesma. A bonitinha não era propriamente boba; na verdade vinha de outra geração; estava pensando nas férias na praia, no encontro com as primas, na pousada fofa que tinham reservado, nas aulas de surf prometidas pelo Marcelo, o gato mais lindo da turma. A celebridade já atingira as raias da indignação. “Mas, como ela não me reconhece? Impossível!” Virou-se para a janelinha; ficou a ver nuvens, emburrado. Fingiu voltar a ler a revista em inglês, mas olhava, na verdade, para a pele dourada da bonitinha, visão que lhe causava turbulências desde a decolagem.
Escala em Salvador. Cintos de segurança atados, preparativos para o pouso. No desespero, a celebridade sacou da pasta uma de suas obras e rabiscou qualquer coisa.
- Foi um prazer, Renata. Guarde este presentinho, está autografado, viu? Vale muito!
A Renata agradeceu e, com uma só frase - ingênua, porém certeira - abateu definitivamente a celebridade antes de deixar a aeronave.
- Brigada, vou guardar. Quem sabe o senhor cai no vestibular, né?
(Nota do autor: esta história é real e teve lugar num voo da TAM. Não conto quem é a tal celebridade – mas que foi muito gozado e quase ridículo, ah, isso foi.)
Fernando Fabbrini é roteirista, cronista e escritor, com dois livros publicados. Participa de coletâneas literárias no Brasil e na Itália e publica suas crônicas também às quintas-feiras no jornal O TEMPO.

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