segunda-feira, 18 de janeiro de 2016

Paris embute outra Paris

O deslumbramento com a cidade é coisa de esquerda, direita e centro.
Por Ricardo Soares*
Paris é uma festa eterna, perene, imutável. Faça o que fizer, qualquer mujahedin, aqui as esperanças se renovam e até as melancolias se traduzem em arte. Sou suspeito para falar. Estou aqui não de férias, mas me dando uma, duas, três tréguas. Uma por mês. Tentando me curar de emoções fortes sofridas em recentes tempos profissionais, onde abracei causas e fui abraçado pelos ursos traiçoeiros da burocracia e da burrice. Jamais convivi com tanta gente talentosa e guerreira que vivia em paralelo sempre tentando superar as cascas de banana jogadas por cretinos do corporativismo e da mediocridade. Enfim, um paradoxo bruto que agora parece um esmaecido fantasma do passado. Paris apaga tudo.
Antes que digam que o deslumbramento com a cidade é coisa de "esquerda caviar" eu vos digo: é coisa de esquerda, direita e centro. Caviar ou não. Porque Paris é tão caprichosa que tem muitos donos. São muitas Paris em uma só com o perdão do óbvio gritante.
Sempre acho curioso nas redes sociais algumas pessoas que escrevem sobre a capital da França como se proprietário dela fossem. Gente que por ter vivido, passado a juventude, ou estudado por aqui considera-se mais "conhecedor"de Paris que os outros. Como se as dicas deles valessem mais, como se a apreciação de suas papilas gustativas fossem mais "gourmets" que a de outros. Geralmente são dicas caras, manjadas, apinhadas dos tais turistas chatos. Ou dicas com a presunção de serem "discoladas", capice? Preguiça maior do que essa só sinto daqueles que vêm a Paris ver e viver em torno dos desfiles de alta costura. Para esses dá-lhe Paul Theroux na veia, o escritor que sempre ultrapassa as paredes da percepção ligeira, superficial.
Se Paris é para todos nem todos conhecem a Paris de verdade embora se diga que sim. Aquela que se aglomera entre os 17, 18 e 19 ème arrondissement, por exemplo, muitas vezes só aparecem na mídia local ou mundial quando são cenário de conturbações ou prisão de árabes, africanos, indianos, asiáticos renegados. Aqui, nesses cantos, há uma multidão de renegados da sociedade francesa que aparentemente convivem em harmonia e interagem bem. Para provar isso, pena eu não ter conseguido o registro fotográfico de um garoto negro abraçado a outro asiático que caminhavam na rue Riquet dias desses, confabulando sobre dilemas escolares. Ou seja, é uma Paris pouco vista inclusive pelos brasileiros ilustres, ou pretensamente ilustres, que passam por aqui.
Por fim, quem sou eu para imaginar que estou contando uma grande nova nesse museu das grandes novidades que virou o mundo digital de flagrantes instantâneos? Não conto uma novidade, mas constato uma novidade. Mesmo tendo vindo tantas vezes a Paris me deparo agora com uma cidade embutida em outra, que é muito interessante. E que não decifrarei, mas devorarei com os olhos de um adolescente que já não sou.
*Ricardo Soares é escritor, diretor de TV, jornalista e roteirista. Autor de 7 livros foi cronista dos jornais "O Estado de S.Paulo" e "Jornal da Tarde" entre outros.

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