sábado, 20 de fevereiro de 2016

Artigo: Este é o meu Filho, ouvi-o!

Orani João, Cardeal Tempesta, O.Cist.*
Rio de Janeiro (RV) - Para compreendermos o que Senhor nos quer dizer hoje com estas leituras da sua santa Palavra, é necessário recordar que estamos no caminho quaresmal, e que este caminho, que nos leva à luz da celebração pascal, é imagem do nosso próprio caminhar neste mundo: caminho por entre trevas e luzes, crises e bonanças, momentos de profunda dor e de grande consolação. No caminho da Quaresma, como naquele outro, da vida, o Senhor nos educa, nos prova, nos consola, nos conforma à sua cruz e nos prepara para participar da sua gloriosa Ressurreição.
No Segundo Domingo da Quaresma, o Evangelho é o da Transfiguração de Jesus (Ano A: São Mateus; Ano B: São Marcos e Ano C: São Lucas). O acontecimento contado com três enfoques diferentes. Em São Lucas, o evangelista deste ano, a narração é mais extensa. Jesus sobe a uma alta montanha e leva consigo Pedro, Tiago e João. Jesus sobe ao monte para rezar. Já aqui temos uma bela lição quaresmal. Se o nosso Salvador rezou, como nós poderíamos não rezar? Como poderíamos nos dar ao luxo de pensar poder ser verdadeiramente cristãos sem buscar sintonizar nosso coração com o coração de Cristo, que é imagem do coração do Pai? Também nós, caríssimos, perseverando na oração, traremos certamente em nós o reflexo da glória de Deus, que resplandece na face de Cristo – e este é o objetivo da Quaresma: fazer-nos participantes da alegria pascal, plena da glória do Ressuscitado.
Na transfiguração, o rosto de Jesus muda de aspecto e sua veste se torna branca e esplendorosa. Aparecem ao seu lado, em glória, Moisés e Elias, a “Lei” e os “Profetas”, conversando com ele a respeito do “êxodo” que ele realizará em Jerusalém.
Moisés representa a Lei, e Elias representa os profetas de Israel! Eis a mensagem clara: a Lei e os profetas dão testemunho da páscoa do Senhor, que irá consumar-se em Jerusalém. A cruz não é um absurdo, mas parte do desígnio de salvação e de vida, que tem sua resposta na Ressurreição. Seria uma tristeza, uma miséria, um cristão desejar ser discípulo de Cristo Jesus fugindo da cruz, comportando-se como inimigo da cruz do Senhor! Será o próprio Senhor ressuscitado quem recordará aos discípulos de Emaús que era necessário que o Cristo sofresse para que entrasse na glória; será o próprio Senhor quem mostrará que tudo isto fora anunciado na Lei e nos profetas, representados hoje por Moisés e Elias (cf. Lc 24,26-27).
Moisés é quem conduziu o povo de Deus no “êxodo”. Jesus é o novo Moisés. Ele refaz a história do povo hebreu. Foi tentado no deserto, mas resistiu ao tentador (enquanto o povo hebreu no deserto se revoltou contra Deus). Agora Ele vai levar a termo essa caminhada. Ele se dirigirá resolutamente a Jerusalém (Lc 9,51) onde celebrará a Páscoa da nova e eterna Aliança (22,15.20). Assim, Ele tornará livre, por sua palavra da verdade e pelo sacrifício de si mesmo, o novo povo de Deus.
E há ainda Elias; Jesus é também o novo Elias: como este, Jesus viveu quarenta dias no deserto e fez milagres muito semelhantes (o filho da viúva, Lc 7,11-17). Elias teve de fazer seu “êxodo” fugindo da rainha Jezebel por causa de sua fidelidade a Deus (1 Reis 19,1-3). Assim, como Elias foi arrebatado por Deus, Jesus subiu aos céus (Lc 9,51; 24,51; cf. 2Rs 2,1; Sr 48,1.9). E, como se espera Elias para inaugurar o tempo final e preparar o julgamento de Deus (Ml 3,23-24; Sr 49,10), pode-se também dizer que Jesus é o profeta do tempo final. (Mateus e Marcos identificam João Batista com Elias).
Lucas explicita que durante o encontro de Jesus com Moisés e Elias, Pedro e seus companheiros tinham dormido. Quando despertaram, viram os dois personagens com Jesus transfigurado. Quando os dois começavam a se afastar, Pedro propôs construir três “tendas” –, isto é, moradia de nômades, como a Tenda de Deus no êxodo, para que essa presença gloriosa pudesse continuar. Achou bom demais estarem assim! Mas a nuvem, símbolo da presença divina, fez com que experimentassem como no tempo de Moisés, no deserto (Ex 19,16, etc). E, de fato, da nuvem sai uma voz declarando a respeito de Jesus: “Este é meu Filho, o eleito: escutai-o”.
De repente, terminou a visão. Encontravam-se sós. E não falaram disso naqueles dias. Só depois. O que significa tudo isso? Significa que, durante a vida de Jesus, quando Ele iniciou seu “êxodo” rumo a Jerusalém, eles perceberam nele algo de Deus, mas não O entenderam e nem O publicaram. Só depois da Páscoa e da ascensão de Jesus, com a vinda do Espírito Santo, é que vão compreender e proclamar.
Portanto, eis a mensagem clara: como Abraão, que somente viu a glória de Deus no meio da noite depois da vigília e da provação, como Moisés e Elias, que somente viram o resplendor da glória do Senhor após o combate e a penitência, assim também nós, se quisermos ser inundados da glória pascal, devemos combater o combate quaresmal. O combate da Quaresma, este é o combate da vida: passar da imagem do homem velho, com seus velhos raciocínios e sentimentos, ao homem novo, imagem do Cristo glorioso.
*Arcebispo Metropolitano de São Sebastião do Rio de Janeiro, RJ

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