terça-feira, 16 de fevereiro de 2016

Imitando ‘Amerika’

A Holanda foi longe demais ao imitar o jantar dado aos jornalistas que cobrem a Casa Branca.
Ilustração de Marguerita Bornstein)
Por Lev Chaim*
Os holandeses chamam os Estados Unidos de Amerika, com k e não com c. E com isto, eles estão se referindo apenas ao país de Donald Trump e não ao continente americano, tal qual nós fazemos o tempo todo.   
Mas, desta vez, a Holanda foi longe demais, ao imitar o jantar dado aos jornalistas que cobrem a Casa Branca, jantar este que ocorre uma vez ao ano, desde 1920. É uma noite em que os jornalistas, calados, ouvem as graças do presidente que é um dos únicos a falar, além do apresentador e do conferencista cômico escolhido para a ocasião. 
Na Holanda, que não tem presidente mas primeiro-ministro, foi o conferencista cômico Jansen, que se saiu muito bem com suas críticas perspicazes à política holandesa e europeia do dia-a-dia, sem visão a longo prazo.   
O primeiro-ministro, Mark Rutte, meio duro de cintura, contrariando as expectativas, se saiu muito bem e deixou claro ali, naquela noite, que era ele quem falava e os jornalistas se calavam. O máximo que podiam fazer era rir ou aplaudir, o que aconteceu várias vezes e foi incrível para o telespectador, acostumado a ver o seu enfadonho premier, com a sua ladainha política de sempre.   
Na verdade, foi uma surpresa e o programa foi o mais visto da noite, com um público de 2 milhões e 700 mil telespectadores. Uau, podem exclamar. Este ibope não é para qualquer um. Mesmo sem o charme de Obama, Mark Rutte foi quase que perfeito, até mesmo nas gracinhas sobre si próprio, de quando os jornalistas o acusavam de águas ralas, sem conteúdo.
O premier holandês não é casado e, para aquela noite, convidou uma atriz que não conhecia para ser a sua parceira de mesa, frente à toda a imprensa e alguns convidados notórios. Alguns dias antes, esta mesma atriz disse em um programa de grande audiência que havia sido convidada por Rutte para o jantar da imprensa, mas que não o conhecia. Com estas informações prévias, nota zero para ela, que ficou ali como um jarro ornamental, sem graça, sem fala. 
Dois foram os momentos se destacaram para mim, que aprendi que Calvinista também sabe fazer humor. Quando Rutte se referiu ao grande problema do Ministério da Justiça, que mentiu ao parlamento a quantia paga por uma delação premiada. Quando perguntado sobre o montante, a resposta foi que os papéis haviam sumido. Neste jantar, Rutte simplesmente disse que o Ministério da Justiça era perito em fazer sumir papéis importantes. Ele teve coragem.  
Um outro momento máximo foi quando ele fez uma graça sobre o ex-ministro do exterior da Holanda, Frans Timmermans, hoje no Comissariado Europeu. Ele é conhecido por falar 7 línguas de forma impecável. Ai então, o premier disse que iria enviar Timmermans de volta à escola para estudar a sua oitava língua, com a qual ele poderia aprender a escutar os outros. 
Enquanto assistia a tudo isto, folheava os jornais holandeses. O parlamento havia dado permissão para os aviões F-16, da Holanda, bombardearem também a Síria, pois, até o momento, eles se restringiam ao Iraque. 
Numa profunda análise dos bombardeios russos sobre Aleppo, a seguinte conclusão: o horror geral; a falta total de humanidade; vítimas civis, que sem canto para correr fugiam para a fronteira com a Turquia.
Ai você pode perceber muito bem que o presidente russo, com seus bombardeios cegos sobre a oposição síria, para manter o presidente sírio Assad no poder e não contra os terroristas do Estado Islâmico como ele vem afirmando, acabava por colocar a Europa de joelhos devido à avalanche de refugiados que  batem as suas portas. Só um bobo é que não percebe que Putin quer mesmo é distrair o povo russo para se manter no poder e não deixa-lo perceber o lamentável estado da economia do país. 
Em Amsterdã, o jantar do premier para a imprensa acabou sendo uma noite divertida ao imitar essa tradição estadunidense de aliviar a tensão. Mas os problemas não foram embora e só se avolumaram à porta da Holanda, agora, na presidência semestral dos trabalhos da União Europeia. 
Na dependência da Turquia para que os refugiados não venham aos montes para a Europa e sem a coragem de falar grosso com o ditador russo, a Europa vem capengando há meses com esta que é a maior crise dos últimos tempos: os refugiados da guerra, 11% da população síria morta ou ferida e ninguém apresenta uma estratégia clara para a luz no final do túnel.    
*Lev Chaim é jornalista, colunista, publicista da FalaBrasil e trabalhou mais de 20 anos para a Radio Internacional da Holanda, país onde mora até hoje. Ele escreve todas as terças-feiras para o Domtotal.

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