segunda-feira, 1 de fevereiro de 2016

Migrações em massa: um flagelo apocalíptico

As movimentações de pessoas nunca foram fáceis nem provocaram reações favoráveis.
Para indivíduos isolados ou famílias inteiras, a necessidade de migrar, simultaneamente com dezenas, centenas de milhar de outras, é um calvário de provações e sofrimento que nem sempre termina bem, mas sempre significa perdas irreparáveis – não só materiais como emocionais.
Já vem no Antigo Testamento; quando os judeus quiseram fugir do Egipto e voltar para a Palestina, foram precisas sete pragas divinas, alguns milagres e muita determinação dos migrantes para chegar à Terra Prometida.
As movimentações de grandes quantidades de pessoas – populações inteiras, por vezesas – nunca foram fáceis nem provocaram reações favoráveis. Nunca.
Mas não precisamos de recuar aos tempos bíblicos para conhecer estas desgraças colectivas; nos últimos cem anos houve incontáveis migrações, em que pelo menos um dos Quatro Cavaleiros do Apocalipse (peste, guerra, fome e morte) sempre esteve presente.
Basicamente, uma população é obrigada a emigrar, ou decide fazê-lo, porque as condições em que vive se tornaram insuportáveis. Não é uma opção entre outras; é um imperativo de sobrevivência.
Acontece que é tão detestada no lugar para onde escolheu ir como era no lugar de onde teve de sair. Provoca uma carga brutal no país ou região onde chega, não só material como também cultural. Uma coisa é receber meia dúzia de famílias à procura de melhor vida, outra ver entrar pelas fronteiras milhares de estranhos desesperados, trazendo consigo muita necessidade e estanhas diferenças de comportamento.
Sem puxar pela memória, podemos recordar o êxodo de três milhões de arménios às mãos dos turcos (1915), os vinte milhões de deslocados pela II Guerra Mundial (1945), o milhão de franceses que teve de fugir da Argélia recém-independente (1962), ou outro milhão de portugueses em perigo de vida que escapuliram das ex-colónias da Guiné, Angola e Moçambique (1975).
No caso dos franceses e dos portugueses, deu-se uma situação ainda mais deplorável. Não estavam a fugir para um país estrangeiro, mas a voltar para o seu próprio país (embora muitos tivessem nascido nas ex-colónias), com a mesma língua e cultura; mesmo assim foram muito mal recebidos e mal tratados. Até hoje, esses que tiveram o azar de estar na contra-corrente da História, os seus filhos e netos, ainda são tratados pejorativamente como “pied-noirs” em França e “retornados” em Portugal.
Tudo isto para colocar em perspectiva o que se está a passar na Europa, agora, no ano da graça de 20015. Em cerca de um ano – até bastante tempo para este tipo de migrações, que têm a rapidez da fuga para salvar a vida – chegaram ao envelhecido Continente mais de um milhão de refugiados. Têm outros hábitos, uma cultura completamente diferente, idioma próprio, e até a cor da pele não é igual aos seus contrariados hóspedes. Uma parte será de famílias aterrorizadas, constituídas por pais e filhos, avós e sogros; mas outra são homens sozinhos enraivecidos, sem profissão útil para o lugar onde chegam, sem sequer falar o idioma, com hábitos culturais que há muito foram abandonados ou criminalizados na Europa.
A União Europeia, que não consegue sequer gerir os seus cidadãos natos, primeiro recebeu-os a medo, com a compaixão da má consciência; logo a seguir, sob a pressão de comportamentos considerados aberrantes e necessidades materiais incomportáveis, está a rejeitá-los.
Não faltam os discursos de dirigentes políticos e de ONGs, nem os comentários de pessoas comuns nas redes sociais, a falar de solidariedade, obrigação moral, e compreensão; o fato é que nos países onde o grosso desta imigração passa, ou quer ficar, há cada vez menos paciência.
Começou logo por aqueles onde a democracia está pouco consolidada, como a Hungria ou a Sérvia, mas agora está a chegar a nações onde há séculos existe o primado da lei – e assim sendo, é com leis que o estão a tratar. Novas leis, impensáveis há poucos anos e que também se pensava que nunca voltariam a ser aprovadas.
É o caso da Dinamarca, essa ilha de solidariedade e igualdade social, onde na semana passada foi aprovada legislação que, embora seja fundamentada de modo diferente, lembra muito as leis nazis. Prevê a possibilidade de o Estado confiscar bens a refugiados a quem tenha sido autorizada a permanência no país, no valor excedente a 1.340 euros. Aquela que é já internacionalmente apelidada de “lei das jóias”, além de se prestar a comparações históricas que, dizem os organismos internacionais, repugnam à consciência do Homem, sinaliza um evidente retrocesso politico, jurídico, social e civilizacional, onde a ponderação equilibrada das soluções e a solidariedade humana cedem lugar a um egoísmo e racismo que se julgava extinto em 1945.
Também é o caso da Suécia, outro paraíso do bem-estar, que se prepara para expulsar entre 60.000 e 80.000 migrantes. O ministro do Interior, membro de um governo de esquerda formado por social-democratas e verdes, anunciou na quarta-feira passada que aqueles que viram os seus pedidos de asilo rejeitados vão ter de sair país. (Em 2015, a Suécia tinha aceitado mais de 160.000 pedidos). Mas na semana passada uma funcionária num centro de acolhimento foi morta e provavelmente estuprada por um grupo de energúmenos.
Na Alemanha ainda não foi criada legislação, mas é inevitável, sobretudo depois de uma série de estupros e violência contra mulheres ocorrida na passagem do ano.
Na Grã Bretanha, o governo conservador também está a preparar legislação que, já agora, aproveita para meter no mesmo saco os imigrantes que já lá estão há muitos anos mas não se integraram. Mesmo os que têm trabalho, se tiverem rendimentos abaixo de um certo valor anual, serão expulsos.
A situação não é consensual e até tem provocado reacções estapafúrdias, que apenas reflectem a confusão que se vive um pouco por toda a Europa. Por exemplo, um grupo de feministas alemãs emitiu um comunicado surreal em que afirma que “sempre houve violência sexual contra as mulheres, pelo que não passa de racismo e oportunismo acusar os estrangeiros de a terem propagado”, na tal noite aterradora em várias cidades alemãs. E dizem elas:
“O bom alemão quer guardar as suas mulheres para abusar delas ele próprio.”
É evidente que falta bom senso em muitas posições. Mas a postura que se está a tornar dominante, a cavalo nos partidos de direita e extrema-direita que não param de crescer, é de rejeição aos refugiados – o que provoca que os próprios recém-chegados também rejeitem os países de acolhimento, numa espiral de incompreensão e violência.
Talvez não seja por acaso que a Revelação de São João, onde ele fala dos quatro cavaleiros, se chama o Livro do Apocalipse.
*O jornalista José Couto Nogueira, nascido em Lisboa, tem longa carreira feita dos dois lados do Atlântico. No Brasil foi chefe de redação da Vogue, redator da Status, colunista da Playboy e diretor da Around/AZ. Em Nova Iorque foi correspondente do Estado de São Paulo e da Bizz. Tem três romances publicados em Portugal.

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