Em entrevista exclusiva à Adital, o doutor em Teología Carlos Schickendantz explica os desafios para a Igreja latina, destacando que esta perdeu o contato com outras tradições cristãs, o que conduziu a um empobrecimento da noção de Igreja.
Por Cristina Fontenele
Como cenário futuro, o teólogo Carlos Schickendantz indica que a Igreja Católica precisa converter-se em uma Igreja mundial, com uma tradição que se constrói a partir de processos de inculturação de distintas realidades.
Schickendantz autor de vários livros e artigos, já foi vice-reitor da Universidade Católica de Córdoba, na Argentina, e, atualmente, é diretor de publicações da Coleção de Teologia dos Tempos, do Centro Teológico Manuel Larraín, no Chile. O teólogo analisa ainda as diferenças entre as igrejas europeias e as latino-americanas, e confirma que "não se media com a mesma vara” as produções latinas com as produções de outros lugares.
Sobre um novo impacto do Concílio Vaticano II, ele avalia que o Papa Francisco recupera a noção de ‘povo de Deus’ e o retorno ao Evangelho.Refletindo sobre a "ação do Espírito no coração dos povos”, o teólogo afirma que o Espírito se manifesta nas pessoas para o bem comum, o que outorga autoridade às biografias e às experiências.
Carlos Schickendantz, doutor em Teologia, é diretor de publicações da Coleção de Teologia dos Tempos, do Centro Teológico Manuel Larraín, no Chile.
Adital: Qual o novo impacto do Vaticano II?
Carlos Schickendantz: Um novo impacto vem com a ascensão de Francisco como bispo de Roma, em uma linha dupla. Por uma parte, se recupera um conceito, uma ideia central no documento do Concílio sobre a categoria de ‘povo de Deus’, que havia ficado esvaziado, particularmente no Sínodo dos Bispos de 1985, quando se obscureceu a categoria do ‘povo de Deus’. Isto tem uma grande significação, porque é uma categoria que o Concílio elegeu, não como mais uma entre outras, mas como a mais adequada para descrever a natureza da Igreja. Francisco recupera a noção de ‘povo de Deus’, com todas as consequências que isto tem, participação e responsabilidade de laicos e laicas na vida da Igreja, enfim, sujeitos históricos, etc.
E a segunda é a metodologia do lava-pés, que foi tão importante na América Latina e que também ficou empacada e não foi adequadamente recebida no governo universal. E essa metodologia foi muito importante na América Latina, para desenvolver uma identidade eclesial e, particularmente, a opção preferencial pelos pobres.
Adital: Se pudesse falar sobre cinco grandes reformas na Igreja, quais seriam?
Schickendantz: Uma seria, como diz Francisco, ‘eu tento fazer uma volta ao Evangelho’, ‘quero fazer, de novo, com que o Evangelho seja operativo, eficaz, seja o centro da minha preocupação’. Muita gente que conhece Francisco diria que o grande sinal dele é uma volta ao Evangelho e uma forma de vida, inclusive o Papa, que é transparente e reflete mais o Evangelho.
Uma segunda coisa tremendamente importante é colocar o papado, este símbolo internacional tão relevante, a serviço da justiça e dos pobres da Terra. O Papa tem muito relevo na hora de falar dos Estados Unidos, de falar da ONU, em sua forma de vida, em sua agenda para colocar a Igreja a serviço dos desfavorecidos.
Um terceiro ponto poderia ser o que, hoje, se fala em sinodalidade da Igreja. Uma Igreja que faça funcionar toda a sua riqueza, recuperando e pondo mais valor na fé dos cristãos, laicos, homens e mulheres na vida da Igreja, aproveitando toda a potencialidade da Igreja, modificando uma estrutura bastante monárquica de autoridade.
Um quarto ponto poderia ser o tema das mulheres, tão importante para a vida da Igreja, e que ainda, como muitos reconhecem, está muito atrasado o reconhecimento da sua dignidade, da sua participação na tomada de decisões, no exercício de ministérios na Igreja.
E um quinto ponto, pensando, por exemplo, o tema da inculturação. O Papa está decidido a dar mais valor às igrejas regionais, ou seja, aos diversos contextos. Não tantas normas, saída do centro, processos de inculturação nas próprias regiões, através do discernimento das próprias igrejas. Estes poderiam ser alguns pontos que estão em execução e que já vão se mostrando sucessivamente.
Adital: Falando sobre reformas, como avalia os escândalos sexuais do clero e a atuação do Papa Francisco sobre o assunto? Porque há muita polêmica, algumas pessoas apoiam o Papa e outras acham que ele não faz o suficiente.
Schickendantz: Este é um tema super complicado, que, graças à Deus, saiu à luz. É preciso reconhecer que o Papa Bento [XVI], nesse ponto, creio que muitas pessoas reconhecem que ele fez um avanço importante. Mas é um tema inacabado, como bem se diz, é preciso colocar foco, sobretudo, nas vítimas, já não se pode reescrever o passado. Temos que tratar de, por uma parte, atender às vítimas, em tudo que se possa, escutando-as para que nos digam como podemos ajudá-las, depois dos danos que causados. Temos que revisar nossas estruturas,para que soem os alarmes quando essa coisa se produz, e possa ser detectada o quanto antes.
Passos estão sendo dados. É compreensível que todo mundo julgue que estes são sempre insuficientes. Mas estou confiante em que, após esse grande destape, essa grande explosão, a Igreja aprenda com seus erros que foram cometidos, sobretudo, particularmente e como está à vista, são vários de uma congregação no México, que causaram um dano enorme à Igreja. E temos a Igreja do Chile, o chamado caso padre Karadigma, que causou um enorme dano à Igreja e, sobretudo, às pessoas que foram vítimas, e, em geral, aos crentes que sentem vergonha, hoje, da sua igreja, onde a hierarquia, no caso do Chile, não esteve à altura das circunstâncias.
Adital: Algumas pessoas citam como causa desses abusos o celibato obrigatório. O que pensa acerca do celibato?
Schickendantz: Penso o que disse o arcebispo [argentino Vítor Manuel] Fernández, que está próximo ao Papa. É necessário colocar em funcionamento um processo de discernimento, que implique em diálogo, reflexão, oração, consulta, opinião de muitos e muitas. Abramos processos de discernimento e busquemos o que Deus quer, com esse critério de nos deixar levar pelo Evangelho, e pelo melhor da tradição da Igreja, com a preocupação de reler, no dia de hoje, a melhor estrutura e a melhor decisão.
Creio que o Papa estaria aberto a um processo de discernimento, sem ele querer dizer isso ou aquilo. Abramos um processo de discernimento, bem feito, e vamos aonde esse processo de discernimento, o Espírito de Deus, nos coloque onde nós possamos ver, como fez o Concílio. Mas, agora, com laicos e laicas de todo o mundo. Vejamos aonde isso nos leva e tomemos a decisão que precisa ser tomada. Creio que, no princípio, não se pode descartar que o celibato, como assim se diz livre, ninguém pensa que esta seja a solução para a crise que a Igreja tem, mas é um tema que não há nenhum motivo para se postergaremos processos de diálogo em torno disto.
É necessário ter uma reflexão comum,falar abertamente, olhar os pontos de uns e outros, e chegar a decisões, como tem sido sempre na Igreja, porque, na Igreja, o consenso tem uma enorme relevância. Não há o bispo de Roma, se não tem 2/3 dos votos, não há um documento do Concílio, se não tem 2/3 dos votos, nem se gera a democracia, se não tem 2/3 dos votos para ter um presidente.
O tema do consenso, agora, é necessário ampliá-lo, já não somente sobre os bispos. Com a eclesiologia que temos hoje, é preciso ampliar e escutar os fiéis, que têm esse sensus fidei e esse sentido, esse olfato como diz o Papa, para discernir o que é bom, o que Deus quer, o que é o melhor.
Adital: Quais as diferenças entre as igrejas europeias e as latino-americanas?
Schickendantz: Naturalmente, é uma grande novidade que um papa latino-americano chegue ao bispado de Roma, e significa uma realidade que é difícil de medir para os europeus. Sobretudo, porque este homem chega com sua forma de ser, de vestir, de falar, de tomar decisões, de rodear-se de gente, é muito diferente e um grande contraste com a forma de exercer o episcopado e também do bispado de Roma. É um homem que se mete na Corte, na Cúria Romana, que tem outra dinâmica, outra forma de vestir-se, de tratamento, às vezes, cortesão, e o Papa significa, neste ponto, uma grande diferença, porque leva sua forma de vida a um lugar, que é fundamentalmente distinto.
A Europa está vivendo processos que são parcialmente pelo menos bem diversos do que se mostra em outras regiões do mundo. Não é o mesmo que na África, que tem outros desafios, uma Igreja em crescimento, que não está em diminuição, como é a sensação em distintos lugares da Europa, onde há uma Igreja em retirada, com empobrecimento institucional, com um forte processo de inculturação.
Os processos são muito diversos em cada lugar.Certamente, a Igreja latino-americana tem, agora, o que contribuir,e creio que está sob os olhos de todos na personalidade de Francisco, que um típico latino-americano pós-conciliar. Neste sentido, há uma grande diferença da agenda europeia e da agenda asiática porque, em todo caso,os latino-americanos continuam sendo ocidentais. De repente, veremos um bispo de Roma asiático, africano e, então, veremos outro destaque, outra história, outra tradição, outros autores, linguagens. A Igreja vai viver momentos muito fascinantes na próxima década e, às vezes, nem tão difícil de digerir para todos.
Para Schickendantz, é preciso reler a tradição cristã no próprio contexto cultural, partindo sempre de um processo de diálogo.
Adital: Quais os desafios práticos para essa Igreja latina?
Schickendantz: Como já disse João Paulo II, ‘respirar com os dois pulmões’. No segundo milênio a Igreja latina, por distintas circunstâncias, foi uma tradição que de alguma forma monopolizou, perdeu contato com outras tradições cristãs, católicas. E essa ruptura conduziu a um empobrecimento da noção de Igreja, da noção de ministério, a um ouvido da palavra de Deus na vida da Igreja, etc.
Creio que, hoje, a Igreja Católica está com um desafio, como dizia um teólogo alemão, há uma década, em um texto muito citado, a Igreja Católica tem que converter-se em uma Igreja mundial. Quer dizer, não exporta uma tradição cultural latina e, sim, uma tradição católica, que se constrói a partir de processos de inculturação de distintas realidades. Não é a mesma combinação que a França, Filipinas, Índia, Guatemala e, portanto, vamos fazer uma estrutura muito mais plural, com o desafio de conservar a unidade, mas com lugar de destaque para a diversidade, a pluralidade, o valor do próprio contexto, no direito,na Teologia, na pastoral.
Adital: A Igreja precisa se adaptar aos contextos locais...
Schickendantz: Certamente. Um processo de reler a própria tradição cristã, voltando-se para Jesus, o Antigo Testamento. Reler a própria tradição cristã, no próprio contexto cultural. A organização é sempre um processo de diálogo, de cultura, porque até mesmo o Evangelho precisava da cultura semita, depois, passou à cultura grega, e não há nenhuma absolutização, sempre o Evangelho tem que ser novamente dito, cantado, feito Teologia, feito liturgia.
Em cada contexto cultural, é necessário reinterpretar a tradição destes 2 mil anos, em um novo contexto cultural. Isto leva a uma grande criatividade porque aparecem novos destaques, alguns pontos de novidade, outros não previstos, como surgiu, por exemplo, a opção pelos pobres na história do pós-Concílio latino-americano. Isto é algo fascinante, que deve ser feito pelas pessoas dos próprios lugares, não pela exportação de um sistema, de um centro de governo mundial que poderia ter na Igreja católica.
Adital: Já comentou que existiam tratamentos distintos para os teólogos europeus e para os latino-americanos. Como isto ocorreu?
Schickendantz: Como reconhecem muitos autores, e mesmo Francisco reconheceu, nos últimos anos, houve demasiados procedimentos contra teólogos, teólogas e instituições. Procedimentos criticáveis a partir de diferentes perspectivas. Uma delas é não respeitar a autonomia dos bispos e das próprias Conferências Episcopais, passar por cima delas, determinando a partir de Roma, sem escutá-las, sobre o que deviam fazer as igrejas regionais com seus discernimentos, baseado na Teologia que estavam produzindo.
Um aspecto no qual se notou isso foi um duplo padrão, uma dupla medida, para julgar teólogos de outras latitudes em relação aos teólogos da nossa latitude. Como disse [Gustavo] Gutiérrez e alguns outros, não se media com a mesma vara as produções daqui e as produções de outros lugares. E, às vezes, expressões somente repetidas por teólogos e teólogas latino-americanas de expressões europeias aqui tinha efeitos, como perder a cátedra ou não poder assumir cátedras em Faculdades de Teologia, enquanto autores europeus sequer se inteiravam disso. Eu mesmo tive a oportunidade de falar com teólogos europeus e dizer a eles ‘veja, essa frase que você escreveu e que, agora, está em nossos textos, a Congregação da Fé disse que não era uma frase adequada’.
Schickendantz explica que o Espírito se manifesta em cada um, para o bem comum, e por isto é preciso criar estruturas que permitam que cada pessoa possa falar, que sua palavra possa ser dita, escutada e levada a sério.
Adital: O que significa a ação do Espírito no coração dos povos?
Schickendantz: Uma coisa importante é reconhecer a ação do Espírito que opera em todas as pessoas, o que está em Paulo. O Espírito se manifesta em cada um, em cada uma, para o bem comum. Isto é uma ideia super velha, que, agora, adquire uma vitalidade. Onde um homem e uma mulher tomam a palavra pode estar o Espírito, dizendo-nos uma palavra que não encontraremos buscando somente na Bíblia, ou somente no texto do magistério, ou somente no texto da tradição, ou em um autor teólogo. Nas pessoas se manifesta o Espírito, para o bem comum. Isto se outorga às biografias, às experiências, às palavras das pessoas particulares concretas, quaisquer que sejam suas condições, uma autoridade que pode ser impressionante, se discernimos que aí está o Espírito.
E a mesma coisa com os processos culturais, que são inspirados por Deus, como reconheceu o Concílio muitos deles. E, através de um processo de discernimento, é necessário distinguir porque, como dizem, ‘nem qualquer pomba é o Espírito Santo, nem qualquer espírito é o Espírito de Deus’. Por isso, é necessário um processo de discernimento, que nos faça discernir por onde Deus vai levando a Igreja. Processos, por exemplo, como a defesa da vida, do meio ambiente, do trabalho, do teto, da evangelização, por onde vai o Espírito. Deus está vivo, nos acompanha, fala e quer orientar a Igreja. Assim, devemos nos colocar à escuta dessa palavra, desse Espírito.
Esse Espírito é para todos e todas, em cada pessoa, por isso, é preciso criar estruturas que permitam que cada pessoa possa falar. Que sua palavra possa ser dita, escutada e levada a sério. A organização tem que prestar esse serviço, possibilitar que todos falem, porque, quando alguém toma a palavra, pode estar falando em nome de Deus.Não só os bispos, não só os cardeais, mas os mais simples da Igreja Católica, até mesmo alguém de fora. Ou, como disse o Concílio, inclusive, quem nos persegue, que, no momento, pode nos dar uma luz que não viria de outro lado, senão dessa biografia, dessa palavra, dessa experiência, até mesmo que nos agride, mas nos mobiliza.
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