Janeiro terminou com o maior número de focos de incêndio no Brasil desde 1999.
Por Ana Lúcia Azevedo
Agravadas pelo violento El Niño iniciado em 2015 e ainda ativo, as queimadas castigam a Amazônia. O primeiro mês do ano terminou como o janeiro com o maior número de focos de incêndio no Brasil desde 1999, início da série histórica do serviço de monitoramento por satélite do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). Foram 5.361 contra 4.637 em janeiro de 2015, até então o maior número. A maioria deles, na Amazônia. A seca trazida pelo El Niño agrava os incêndios causados pelo homem. E as perdas para a biodiversidade, alertam cientistas, são muito maiores do que parecem à vista. Mesmo que o verde volte, a riqueza biológica pode não se recuperar em muitas áreas.
Janeiro costuma ser mais chuvoso na Amazônia. Mas este ano ainda há considerável número de focos ativos de incêndio, cerca de 97% deles na Amazônia. A causa provável é o El Niño. A ecóloga brasileira Erika Berenguer, pesquisadora das universidades de Oxford e Lancaster, ambas no Reino Unido, afirma que as perdas de biodiversidade de 2015 e início de 2016 podem custar anos — talvez mesmo séculos — para serem sanadas.
— O que reaparece depois do fogo não se parece em nada com a floresta amazônica original. A mudança é brutal e evidente. Por isso estamos tão preocupados — salienta Erika, que integra a Rede Amazônia de pesquisa e o projeto Ecofor, uma parceria entre o Brasil e o Reino Unido.
Gigantes feridas
Erika estuda a Floresta Nacional do Tapajós, no Pará, dentro de uma área que ainda permanece sob risco elevado de fogo, de acordo com o serviço de Monitoramento de Queimadas e Incêndios do Inpe.
— Choveu muito pouco desde setembro. As chuvas deveriam ter começado a se intensificar em dezembro, e não foi isso o que aconteceu — observa a ecóloga.
Após os incêndios, o verde não demora muito para voltar. Mas isso não é atestado de saúde da floresta.
— Ter verde não quer dizer muita coisa. O que surge é um emaranhado quase intransponível de cipós, vegetação rasteira e árvores menos nobres, que chamamos de pioneiras, pois têm crescimento rápido. Uma bem comum é a embaúba. Essa espécie não costuma ocorrer em áreas preservadas, mas em florestas que já sofreram com a influência da extração de madeira e do fogo, sua ocorrência aumenta em até 37.000%! Não é incomum ver florestas queimadas tornarem-se praticamente um embaubal. E isso não garante a diversidade. Muda a composição da floresta — destaca.
As árvores gigantes que sustentam todo um ecossistema morrem. A paisagem se transforma. Caripés, breus e andirobas são particularmente vulneráveis.
— Algumas árvores gigantes são profundamente atingidas pelo fogo. São como pessoas com feridas graves. Elas podem agonizar por dois ou três anos até morrer. Em três anos, uma floresta pode ter uma perda de 50% de carbono — diz Erika.
O impacto na flora de reflete na fauna. Embora muitos animais fujam do fogo, não têm para onde voltar. Além disso, alguns, mesmo as aves, não conseguem escapar. A pesquisadora Nárgila Moura, da Pós-Graduação de Zoologia da Universidade Federal do Pará e do Museu Paraense Emílio Goeldi, estuda como o fogo muda a fauna de aves.
— As queimadas têm efeitos negativos principalmente nas espécies do chamado sub-bosque, mais sedentárias. Além disso, as florestas queimadas têm espécies diferentes. Essa mudança na comunidade está diretamente associada à morte das árvores. Esta causa mais abertura nas copas, altera o microclima e impede a permanência de algumas aves. Tudo gera um ciclo vicioso, que piora com a recorrência do fogo e da extração madeireira — explica Nárgila.
Entre essas espécies estão aves típicas de florestas intactas, como a choquinha-miúda (Myrmotherula brachyura), o arapaçu-pardo (Dendrocincla fuliginosa) e o rendadinho-do-Xingu (Willisornis vidua). Essas três demonstram como a mata pode ser um mundo de detalhes. Elas passam a vida a seguir formigas.
— São seguidoras de formigas e capturam pequenos organismos afugentados por elas — diz Nárgila.
A especialização aparece também no limpa-folha-de-sobre-ruivo (Philydor erythrocercum). Ele não segue correição, mas come insetos que se alimentam juntos. Já o ipecuá (Thamnomanes caesius) come insetos de folhas mortas penduradas.
Erika diz que o futuro das áreas queimadas é incerto:
— Não sabemos se um dia a floresta se recuperará porque não há estudos de longo prazo. Mas é fato que, uma vez queimada, se torna mais sensível a outros incêndios. A morte de árvores de grande porte abre brechas no topo da mata. E isso permite a entrada de mais luz e vento, o que torna a floresta mais seca. Como a Amazônia não evoluiu com a presença do fogo, é muito sensível a incêndios.
O Globo, 02-02-2016.
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