sábado, 26 de março de 2016

Viver a paixão

Falar da Paixão de Cristo me faz pensar nas nossas paixões. Tudo bem que na tradição cristã elas já se referiam aos afetos humanos, mas no senso comum designam outra coisa. E quem nunca viveu uma grande paixão?

No grego, a palavra pathos significa sofrimento, afetação. Quando se fala em sofrer a ação de algo, fala-se de estar passível a ela, estar submetido ao seu poder. Talvez por isso paixões designem os sentimentos humanos, porque são eles que nos movem. Alguém sem sentimentos, apático, é inerte, sem ação. Pessoas assim parecem não serem tocadas por nada. Já as pessoas ditas apaixonadas são afetadas por tudo com o que se relacionam, têm seus sentimentos suscitados e, por isso, expressam mais vida.

Nesse sentido, a paixão é um afetar-se pelo outro que move com toda a sua existência. Por sua vez, a paixão de Cristo recebe seu nome não tanto pela dor que ele atravessou, mas pelo seu sentir e implicar-se com toda a vida humana. Se somos marcados pela finitude, o Cristo, em sua paixão, abraçaria todo os nossos limites e dores e os sentiria. Portanto, antes da dor, o implicar-se. Eis, pois, a narrativa evangélica, que conta a história daquele que, apesar de sua condição divina, não fez disso algo em que se agarrar, mas esvaziou-se, dando-se aos homens, que receberia sua vida e onde ele próprio viveria.

Quem sente uma paixão é afetado pela pessoa do outro: alegra-se com sua alegria, entristece-se por sua tristeza; tem toda a existência movida pela presença daquele por quem se apaixonou. Não há como ficar indiferente quando se sente uma paixão. Os pensamentos maquinam um jeito de se aproximar que não espante, um falar que não canse, um olhar que cative, um tocar que seja agradável... O apaixonado tem suas forças direcionadas para o outro e seu sofrer está, justamente, no esvaziar que experimenta e na impossibilidade de controlar ou saber qual será a reação de quem ele deseja.

Ainda que se demonstre todo o afeto e o desejo de cuidar, isso tudo pode ser rejeitado pela pessoa desejada. Ela pode simplesmente não querer ou até mesmo temer ser amada. A grande dor de uma paixão está em ter o amor recusado. Quer-se amar o outro, dele cuidar e ser para ele. Mas quando o amado recusa tal amor, sofre o amante por nada poder fazer.

A via crucis do apaixonado tem como fim o pregar do coração. No esvaziar que experimenta, crê que, no outro, poderá ressuscitar. Para aquele que é sua morte, mas também é o seu céu, o apaixonado diz: “Em tuas mãos, eu entrego o meu espírito”. Perdoa-me, Senhor, se comparo tua dor à nossa, mas como pode conhecer a sua quem nunca atravessou uma paixão? Que se façam as devidas ressalvas, o Verbo de Deus é eterno; os nossos, transitivos (ou seriam infinitivos?).
 
Adélia Prado
 
No dia 16 de março, no Palácio da Artes, houve mais uma edição do programa Sempre um Papo. A convidada da vez foi a poetiza Adélia Prado. Na ocasião, a mineira de Divinópolis lançou uma coletânea de todos os seus poemas, ficando apenas os 3 inéditos de fora, como ela disse. Para quem não conhece bem a obra de Adélia, seus poemas são marcados por uma lírica sacro-profana. Há constantemente um modo secular (para não dizer humano) ao falar do divino e um olhar divino quando trata do secular. As duas realidades se imbricam em sua poesia, sempre coloridas de mineiridade. Já no alto dos seus oitenta anos, a artista continua com todo o vigor poético e sensibilidade de profundidade abissal. No evento ocorrido no Palácio das Artes, ela falou sobre sentido e a força do simbólico na vida humana. Diante daquilo que não se pode falar, propôs, ao final, um momento de oração e silêncio. Nesse tempo de Semana Santa, em que a mística cristã contempla o encontro apaixonado entre Deus e homem, a poesia de Adélia parece pertinente.
 
Para adquirir:
PRADO, Adelia. Adélia Prado: Poesia Reunida. Rio de Janeiro: Record, 2016.
Preço médio, 70,00.

Gilmar P. da Silva SJMestrado em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP, com pesquisa em Signo e Significação nas Mídias, Cultura e Ambientes Midiáticos. Graduação em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE). Possui Graduação em Filosofia (Bacharelado e Licenciatura) pelo Centro de Ensino Superior de Juiz de Fora. Experiência na área de Filosofia, com ênfase na filosofia kierkegaardiana. 

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