Quanto vale a vida de uma criança inocente na área que será pulverizada pelo míssil?
O inusitado tem a forma de uma doce e humilde garota queniana que vende pães feitos pela mãe.
Por Fernando Fabbrini*
Creio que até agora não tinha ocupado este espaço do DOM Total para falar de cinema. No uso da plena e simpática liberdade que desfruto neste site, inauguro então minha nova atividade de critico cinematográfico amador eventual, realizando um velho sonho. Cinéfilo fanático desde jovem, sempre tive ganas de dividir emoções causadas por filmes marcantes, aqueles que me fazem errar a pontaria da pipoca rumo à boca.
Esta semana teve mais um e não resisti em compartilhá-lo com vocês. Trata-se de uma produção anglo-americana, de nome “Eye in the Sky” (Olho no céu), título transformado por algum inspirado tradutor nacional no pouco atrativo e quase óbvio “Decisão de Risco”. No elenco, nomes de peso como Helen Mirren (de “A Rainha” e outros sucessos) além de um dos meus atores favoritos, o genial Alan Rickman, falecido em janeiro deste ano. “Eye in the Sky” foi seu último trabalho. Li num site de cinema que várias cenas foram repensadas pelo diretor de forma a poupar Rickman, uma vez que ele já se encontrava bastante combalido pela doença que finalmente o levou. Mesmo assim, a força de seu talento e sua presença na história são marcantes, fazendo a produção dedicar a Alan Rickman uma frase carinhosa nos créditos finais.
Claro que não vou estragar a surpresa e contar tudo. Em linhas gerais, a trama é aparentemente banal: militares ingleses e norte-americanos, investigando a rotina de grupos terroristas no Quênia, descobrem os preparativos de um novo atentado de proporções devastadoras. Assim, decidem eliminar os guerrilheiros que estão escondidos numa casa, atacando-os com mísseis disparados por um drone. A coisa começa a ficar interessante quando vão sendo revelados os recursos disponíveis hoje em dia e a sofisticada parafernália que flutua, silenciosa, acima de nossas ingênuas cabeças. É a globalização estratégica: as preliminares do ataque incluem gente espalhada em bases no Havaí, em países vizinhos do Quênia, nos EUA, na Inglaterra e autoridades engravatadas desde a Europa até à China. Todos se comunicam via teleconferência, com tecnologia digital inacreditável, diante de telas que exibem em tempo real o desenrolar da missão. Entre os aparatos, destaque para um besouro-câmera minúsculo, comandado remotamente por um dos espiões. É fantástico.
Tudo parece encaminhado para o sucesso com a provável eliminação dos terroristas. Os militares estão prontos para agir, comandando a coisa friamente de seus gabinetes e dispondo das armas mais modernas do mundo. Porém, o inesperado acontece quando o roteirista Guy Hibbert introduz o fator humano e, com este, os sentimentos até então desconsiderados daqueles homens e mulheres fardados. O inusitado tem a forma de uma doce e humilde garota queniana que vende pães feitos pela mãe nas ruas miseráveis da periferia de Nairóbi. Imaginem: na hora agá, a menina instala seu balcãozinho ambulante bem junto à casa dos terroristas, na mira exata do míssil – e complica tudo.
Nesse ponto do filme começa o duelo angustiante entre o pragmatismo dos oficiais, buscando o êxito da missão, e as emoções daqueles - também militares - com os dedos nos gatilhos. O prazo é curto; os terroristas estão quase saindo da casa; a oportunidade é rara e não há tempo para indecisões. Quanto vale a vida de uma criança inocente na área que será pulverizada pelo míssil? Quem será o responsável aos olhos do mundo pelos lamentáveis “efeitos colaterais” do ataque? Sucedem, então, sufocantes e tensos conflitos via satélite, dúvidas de cunho humanístico pontilhadas por suores, lágrimas, unhas roídas e nós nas gargantas.
De acordo com o diretor do filme, Gavin Hood, cerca de 30% dos operadores militares de drones precisam ser tratados de estresse pós traumático. Uma coisa é você estar no meio da guerra, ouvindo explosões, com a vida em risco e a adrenalina a mil. Outra é pilotar um aparelho desde uma sala com ar condicionado situada a milhares de quilômetros do objetivo, contemplando o estrago que suas mãos acabaram de causar - com direito a closes de cadáveres despedaçados. Estranho e enlouquecedor – dizem os pacientes.
“Decisão de Risco” é um retrato dramático de um tempo marcado por terrores de origens variadas e novos dilemas que nos fazem repensar os limites da ética e da condição humana. Não percam, de jeito nenhum.
*Fernando Fabbrini é roteirista, cronista e escritor, com dois livros publicados. Participa de coletâneas literárias no Brasil e na Itália e publica suas crônicas também às quintas-feiras no jornal O TEMPO.
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