quarta-feira, 27 de abril de 2016

Amor à senzala

A questão é o povo, ou uma parte dele, que aceita submeter-se a uma elite política.
A servidão voluntária fascina quem se acostuma à “proteção” e à “segurança” dos regimes autoritários.
A servidão voluntária fascina quem se acostuma à “proteção” e à “segurança” dos regimes autoritários.
Por Reinaldo Lobo*
Há um desejo secreto de boa parte da sociedade brasileira de se submeter, suponho, ao autoritarismo. Devemos encarar a existência desse estranho fenômeno. Assim como nos parece absurdo o masoquismo nos indivíduos, é bem esquisita a submissão voluntária de um povo. No entanto, existe.
Será uma nostalgia de nosso passado escravocrata? O mandonismo atrai. Não é raro lermos comentários de colunistas e até de alguns políticos conhecidos pedindo com frequência decisões firmes das autoridades e mais repressão policial. Podemos dar um desconto para aqueles que estão assustados com a criminalidade e com um certo caos administrativo que parece fazer parte da cultura brasileira. Também devemos excluir os fascistas e os velhos comunistas da “linha dura”, pois esses são por natureza autoritários, quando não amantes do totalitarismo.
A questão é o povo, ou uma parte dele, que aceita submeter-se a uma elite política e empresarial frequentemente inepta e corrupta. Pior, parece querer mais disso, apesar dos protestos recentes.  Gosta dos salvadores, da “lei e da ordem” e das soluções de “machos” latino-americanos de vários tipos. Desconfio que essa considerável fração do povo prefere os da direita.
Não é mero acaso o sucesso de personagens públicos como Jair Bolsonaro, de panfletários como Olavo de Carvalho e aquele Azevedo, da Folha e da Veja. Todos se anunciam rebeldes, insurgentes contra a “hegemonia cultural marxista”, mas não escondem que defendem, ao fim e ao cabo, a permanência de valores e das hierarquias mais tradicionais na sociedade e na política.
Alguns deles nem chegaram ao espirito democrático da Revolução Francesa de 1789. No entanto, têm a admiração confessa de setores significativos da classe média revoltada com o período nacional-distributivista dos governos Lula e Dilma.
A servidão voluntária fascina quem busca ou se acostuma à “proteção” e à “segurança” dos regimes autoritários. Boa parte do que temos hoje é resquício dos mais de 20 anos de ditadura civil-militar. Não duvidem disso.
O elogio feito pelo deputado Bolsonaro a um notório torturador do período ditatorial, associando seu voto contra quem foi vítima da tortura, Dilma, ao nome do major torturador Ustra, só foi possível porque existem hoje as condições subjetivas e objetivas para um tal link. O que “legitima” a fluência do seu discurso fascista é o conluio antigo na nossa sociedade entre os que mandam e os que obedecem.
O grande acordo dos vários setores da oligarquia, que impôs a anistia dos torturadores da ditadura, tem a mesma origem do acordo que se trama agora para colocar Michel Temer na Presidência, sempre em nome da conciliação, da estabilidade e da paz social.
O mais grave é que surgiu uma paixão de direita entre nós: o desejo de obedecer e de se conformar. A revolta contra a corrupção, que postulo ser na verdade uma indignação superficial contra a revelação da corrupção, esconde um anseio de que tudo volte ao “normal”, isto é, que a sociedade volte à condição hierárquica tradicional e as mazelas não apareçam de forma tão transparente, com seus conflitos de classe e a sua podridão.
A militância que surgiu à direita não é propriamente um engajamento político duradouro, mas uma explosão de indignação destinada a recolocar “cada macaco no seu galho”.
A aceitação de um político de estilo tradicional como Michel Temer na chefia do governo, independentemente das suspeitas que pairam de estar no mesmo esquema de corrupção exposto pela “Lava Jato”, mostram que o objetivo das manifestações anticorrupção era só expelir o elemento estranho, o petismo, da ordem estável da política e, se possível, da sociedade.
A submissão voluntária ao autoritarismo não se restringe aos 10 por cento dos que votariam no deputado Bolsonaro para a presidência. Não se enganem quanto a isso. A vergonha impede as pessoas de assumirem uma identidade autoritária, pois o discurso ideológico brasileiro apresenta-se como “liberal”.
Um grande número dos participantes das passeatas dominicais festejadas e estimuladas pela rede Globo para servirem como a introdução ao impeachment, revelaram em pesquisas qualitativas que aceitariam uma intervenção militar para “pôr ordem na casa”. Muitos querem a exclusão dos políticos e a entrega do poder a “forças neutras” que possam promover a “limpeza” do País. O ideal varia: ou um militar e ou um juiz.
É interessante observar que uma das acusações ao petismo, frequentes nas passeatas, era a de querer implantar um regime autoritário bolivariano ou cubano. Ao mesmo tempo, os manifestantes pediam um regime autoritário de direita, ainda que temporário, a fim de repor a “normalidade” das coisas.
A própria trajetória do circo do impeachment, que agora tem até musas de beleza inspiradoras, segue um traçado de cooptações, traições e métodos subterrâneos de ação próprias da política tradicional brasileira, calcada no clientelismo. O PMDB tem sido um campeão dessa fórmula, ainda que não seja o único.
O acordo entre os “de cima” que prevaleceu na redemocratização do País, anistiando os torturadores, na eleição indireta de Tancredo Neves, na entrada sem voto de Sarney e, agora, na fórmula do impeachment imposta por um Congresso submisso e corrupto, dirigido na Câmara pelo político mais rejeitado de todos, o célebre Cunha, está sendo aceito passivamente pelos “de baixo”, isto é, a parte do povo cuja identificação de pertencimento ao sistema a torna automaticamente engajada na busca da lei e da ordem. São os admiradores da PM e da repressão ao crime, e até o público dos programas sensacionalistas daqueles repórteres-policiais da TV.
O Brasil continua a ser, infelizmente, o País cujos revoltados voltam à senzala, como aqueles escravos libertos pela primeira revolução democrática negra das Américas e do mundo, a revolução haitiana liderada por Touissaint Louverture, em 1791. Os revoltosos voltavam às fazendas e aos seus antigos donos logo depois da proclamação do fim da escravidão. Tinham medo e não sabiam o que fazer com a liberdade.

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