sábado, 2 de abril de 2016

Peça reflete sobre enigmas como amor e morte

Peça 'Os Realistas', estreia hoje no Teatro Porto Seguro, depois de temporada de sucesso no Rio.

Debora Bloch assistiu à montagem na Broadway e se sentiu fisgada. "Fiquei realmente impressionada com um texto que, aparentemente, tratava de assuntos triviais, mas que trazia várias camadas de mensagens", disse ela, que logo comprou os direitos autorais de Os Realistas, peça de Will Eno que estreia no Teatro Porto Seguro, no dia 2 de abril, depois de temporada de sucesso no Rio.

De fato, Os Realistas acompanha a trajetória de dois casais comuns, de classe social mediana e que, por acaso, têm o mesmo sobrenome, Silva. João (Fernando Eiras) e Júlia (Mariana Lima) estão no quintal de sua casa em meio a uma floresta quando são surpreendidos pelos novos vizinhos, José (Emilio de Mello) e Pônei (Debora). João tem um mau humor atroz, o que tenta ser contemporizado por Julia. É ela quem mais vai se interessar pela doença terminal de José que, num ato de preservação, tenta desviar do assunto com jogos de palavras e brincadeiras, o que é bem-aceito por Pônei, incapaz de lidar com proximidade da morte do marido.

É, portanto, de mortalidade e intimidade que trata Os Realistas. "São anti-heróis pelo fato de serem comuns", comenta Debora, também produtora do espetáculo. "Will Eno mostra aqui como se compartilham medos e fraquezas, ato cada vez mais raro, pois nossa tendência, em caso de doença, é esconder dos outros e até de si mesmo."

A escrita de Eno traz essa rara combinação de ordinário e extraordinário, observa Mariana Lima. "Ambos têm a mesma importância", diz. "Minha personagem é a mais antenada, uma espécie de fio terra para os outros. É ela quem vai se interessar pela doença de José, mas, ao perceber um certo descaso por parte dele, ela tem um rompante, uma catarse necessária para sair do lodo."

O espectador logo vai notar um tom que parece de trivialidade nos diálogos. São frases entrecortadas, ou, muitas vezes, incompletas, como se os personagens realmente não soubessem ou não quisessem dizer a verdade interior.

"Quando li a peça pela primeira vez, confesso não ter entendido nada", comenta Emilio de Mello. "O texto traz apenas os diálogos sem nenhuma indicação para os atores. E, para completar, José me parecia um personagem totalmente diferente a cada cena." 

Ele decidiu, então, mergulhar no desconhecido até descobrir que, no texto de Eno, as palavras não dão conta dos sentimentos. "Os Realistas fala da falência da linguagem, ou seja, de como não somos capazes de verbalizar totalmente o que se passa dentro da gente."

O processo criativo do quarteto foi, dessa forma, marcado por descobertas de sensações. "Há diversas influências no estilo de Eno", comenta Fernando Eiras. "O início e o fim da peça trazem a forte marca de Chekhov, especialmente pela sensação de pequenez dos personagens diante da imensa floresta à sua frente e também por causa da incapacidade de resolver os próprios problemas. A relação dos casais faz lembrar Edward Albee e o jogo de palavras sua incompletude, seu silêncio e seu psicologismo fazem referência a Samuel Beckett."

"A bucólica paisagem campestre é a arena onde os personagens tentam construir um lugar para suas vidas, para que os espectadores possam descobrir muito de si próprios nesse milagre chamado teatro", comenta Guilherme Weber, que inicialmente iria atuar, mas, ao revelar um imenso conhecimento sobre os meandros do texto de Eno, foi convidado por Debora a assumir a direção. 

De fato, com Os Realistas, Weber marca sua sexta parceria com o dramaturgo americano, iniciada com Temporada de Gripe, de 2003, quando ainda dividia o comando da Sutil Companhia de Teatro com Felipe Hirsch. "Construí muitos dos meus códigos de percepção como artista enquanto decifrava e reinventava os dele ao longo de diversos espetáculos, como ator e criador." 

Assim, com delicadeza e extrema percepção, ele afinou os atores a apresentarem a mesma melodia, como se fosse um grupo musical. "Ele nos comparava com um quarteto de cordas, em que não se pode desafinar sob o risco de pôr tudo a perder", relembra Eiras. "E, nesse grupo, Gui brincava ao dizer que eu tocava o fagote, por ter um personagem tão emburrado."

O contraste entre a pequenez humana e a vastidão da floresta é reforçado pelo cenário de Daniela Thomas e Camila Schmidt, em que toras pendem do teto e os atores encenam diante de um painel que reproduz uma mata densa. Engana-se, porém, quem pensar que a melancolia dá o tom do espetáculo - há muito bom humor, detalhe do texto ressaltado por Weber. Inclusive, uma referência a Woody Allen, na cena envolvendo um gambá. Vale conferir.
Agência Estado

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