Aproveitei e perguntei onde ela havia aprendido a ler tão bem.
Ilustração de Marguerita Bornstein
Por Lev Chaim*
Parecia não ser um dia propício para atividades ao ar livre - nublado, chuvoso, meio frio para a época do ano – 13 graus, no auge da primavera. Mas o mercado de livros usados, promovido por voluntários, para doar o resultado das vendas para caridade, estava programado para aquela segunda, após o domingo de pentecostes, que na Holanda era feriado.
Para a sorte de todos, o sol apareceu algumas vezes e a chuva se fez presente muito pouco. Quando entrei na pracinha central de Heusden (Holanda), pela primeira vez naquele dia, notei as barraquinhas com livros e a agitação de todos, ocupados aqui e ali, com atividade de vender livros e quanto mais melhor. Esta feira de livros usados virou tradição na cidade.
Acontece todos os anos, mas desta vez, havia algo diferente. Não só por uma bandinha de Jazz que tocava de vez em quando, mas pela cadeira azul, pomposa, emprestada pela biblioteca municipal e colocada na extremidade da praça, próximo ao porto fluvial. Ali, frente ao microfone, sentavam-se aqueles que iriam ler alguma história ao público.
Quando me aproximei, estava uma jovem, holandesa, com traços hindustanos, entre doze e quatorze anos, sentada na cadeira, lendo uma história. Sua voz clara, pausada e bem entonada, fazia com que todos ficassem atentos. Quando ela terminou, foi um aplauso geral, bem sonoro. Neste momento, ela veio para perto de mim e eu a cumprimentei pela excelente leitura.
Ela agradeceu. Aproveitei e perguntei onde ela havia aprendido a ler tão bem. Sem esperar um segundo, ela respondeu que havia treinado a ler para a avó idosa, que já morrera. A velhinha, segunda ela, tinha tantas dores, que só ouvindo estórias que ela se esquecia de tudo. Por isto, ela se dedicava horas do dia lendo para a avó.
E o engraçado é que ela me contou que o último livro que havia relido para avó, era um dos favoritos dela: “O jogo dos olhos”, de Elias Canetti. Fiquei pasmo. É também um dos meus favoritos. E você entendeu o que lia? – perguntei à jovem. Ela respondeu sincera: “não, mas a minha avó sim e adorava”. Ela também não sabia que este autor havia ganho o Nobel de Literatura de 1981.
Naquele exato momento, ouvindo aquela jovem contando aquela história simples, recheada de humanidade e amor, pensei comigo mesmo: a nossa sociedade tem pressa, corre para aqui e para ali, tudo a mil, e esta jovem, calma, serena, deixava de brincar com as amiguinhas para ler para a avó enferma. Ai lembrei-me do tema do cantor holandês, Douwe Bob, para o Festival Europeu da Canção, com a música que ficou no décimo primeiro lugar: “Slow down brother” (Devagar irmão)!
Já antes, meses atrás, aqueles voluntários já estavam ocupados em juntar e selecionar os livros doados pelas pessoas para poderem vender naquele dia, para obras de caridade. Apesar do tempo não ter ajudado muito, o dia foi um sucesso de vendas, que atingiu a casa de 5 mil e 400 euros. Os organizadores estavam contentes e o público que participou também. E eu fiquei conhecendo uma jovem simpática, com a voz doce, que lia Elias Canetti para avó, doente, sem mesmo ter noção do lia.
*Lev Chaim é jornalista, colunista, publicista da FalaBrasil e trabalhou mais de 20 anos para a Radio Internacional da Holanda, país onde mora até hoje. Ele escreve todas as terças-feiras para o Domtotal.
Nenhum comentário:
Postar um comentário