terça-feira, 24 de maio de 2016

A corrupção como modelo de negócios


Empresas argumentam que foram vítimas de extorsão.
Empresas argumentam que foram vítimas de extorsão.
Por Jose Antonio de Sousa Neto*
Ao final do artigo apresentado aqui na última semana, argumentamos que as questões de transparência e compliance não podem ser tratadas sem que se leve também em conta as dimensões culturais e de liderança que estão ligadas a elas. Isso nos remete a uma discussão complexa e difícil que inevitavelmente passa por questões de natureza ética.
Seguimos aqui mantendo como pano de fundo a Petrobras e empresas de engenharia de suas cadeias de valor e de produção. Ao longo das investigações da operação Lava Jato, muitas empresas de engenharia envolvidas no escândalo argumentaram que foram vítimas de extorsão em um contexto de um “modelo de negócios” imposto pelo poder público. Esse modelo, que parece ter sempre existido no país, parece ter chegado, nos últimos anos, segundo algumas alegações e interpretações, ao estado da arte, quase como um programa de governo, ou ainda pior, um programa também de estado.
À medida que novas delações vão sendo homologadas e acordos de leniência seguem em curso de negociação, observamos o imenso risco de darmos um tratamento excessivamente simples a questões profundas e de grande complexidade. E isto, em geral, é muito pior e traz muito mais consequências ruins do que ficar criando complexidades e dificuldades no tratamento de coisas simples. Vejamos alguns pontos para nossa reflexão:
  • A criação de “departamento” paralelo em empresa de engenharia para gerenciar atos ilícitos em larga escala não parece ser uma decisão meramente reativa. Sobretudo quando as ações do “departamento” transcendem diversos setores da economia onde a engenharia está presente e até mesmo países.
     
  • Processos da natureza do problema que estamos abordando parecem ganhar vida própria, quase como um “moto contínuo”. Tão grande a sua força que a causa e o efeito, a iniciativa e a reação, a origem e o fim parecem se confundir em processo vicioso de retro alimentação. Quase como os buracos negros identificados pela física, que distorcem o tecido do espaço tempo e sobre cujas regiões, além dos seus “horizontes de eventos”, nada se pode ainda saber. O processo passa a ser percebido quase como um “fatalismo da natureza”.
     
  • Na maioria dos países a presença e a força do estado são muito grandes. No Brasil, pela própria estrutura de estado induzida pela constituição de 1988, o governo está presente de forma majoritária na maioria dos setores econômicos. No setor de infraestrutura, o estado brasileiro, direta e indiretamente, é a força motriz e o direcionador dos investimentos. Parece razoavelmente improvável, no contexto de nossa discussão, que ao longo dos últimos anos os governos não tivessem alguma ciência dos vícios do sistema.
     
  • Em declarações recentes da força tarefa da Operação Lava Jato alguns de seus procuradores têm argumentado que a justiça tem procurado cumprir o seu papel, mas que sozinha não tem os meios para fazer as modificações necessárias. Voltemos ao artigo que publicamos aqui, há sete semanas, versando sobre a importância de instituições fortes, públicas e privadas, para a construção de uma nação. Suponhamos agora que uma empresa de engenharia, em um país qualquer, identifique sérios vícios em processos licitatórios para grandes obras de infraestrutura. Suponhamos ainda que existam poderosos carteis de empresas de engenharia que dominem o mercado e que tenham, ou que sejam percebidas como tendo, profundas relações ilícitas com estruturas de governo e, em casos extremos, estruturas de estado. Se a empresa não confia nas instituições e na estrutura de mercado só lhe restariam, por princípio, poucas alternativas éticas: mudar de setor, mudar de país, fechar a empresa ou sozinha lutar contra todo o sistema. Nenhuma alternativa fácil. Todas podem implicar, em diversas dimensões, em grandes riscos (ou mesmo incertezas) e enormes custos.
     
  • No processo de evolução da sociedade humana o papel da liderança sempre foi primordial e liderança é exemplo (antes de tudo e em primeiro lugar). Os que ocupam posições de liderança, sejam no setor público, sejam no setor privado, são os que ditam os valores e as regras. Como no mercado, existem aqui, metaforicamente, os “price makers” e os “price takers”. As responsabilidades não são as mesmas.
     
  • E o papel dos colaboradores e dos engenheiros destas empresas? E o papel das escolas que lhes dão a formação profissional? E os egressos destas escolas? Devem desistir de seus empregos ao identificarem irregularidades sistêmicas?
Independentemente de nossos pontos de vista sobre essas reflexões é claro que tudo isso é insustentável. A valorização da engenharia, da técnica, da inovação, do verdadeiro engenho humano, que cria riquezas, que gera oportunidades e desenvolvimento se perde. Assim não é surpresa que, de um modo geral, o gap tecnológico de nossas empresas de engenharia está aumentando em relação a empresas de outras partes do mundo. Ainda se usam técnicas de décadas passadas. O desemprego é enorme, mas paradoxalmente faltam profissionais qualificados. Neste desvirtuamento de toda a “cadeia de valor” para geração de riquezas a engenharia da linha de frente e da academia perderam, em grande medida, o contato entre elas como se todo o sistema se tornasse disfuncional. 
Mas não precisa ser assim. Existem exemplos de sociedades mais avançadas onde este círculo vicioso foi vencido. É desnecessário falar do potencial do Brasil. Não precisamos reinventar a roda, que por sinal foi um feito da engenharia. É preciso observar, emular quando necessário. Mas para que tudo isso aconteça é preciso que haja consciência e para que ela prevaleça em larga escala é preciso educação. As escolas de engenharia podem e devem ter um papel preponderante na correção de rumos. A técnica sem a dimensão humana e social no fundo é incompleta, porque perde seu maior objetivo que é servir ao homem. No contexto da engenharia entender a importância da ética, da transparência e do compliance no desenvolvimento de projetos é uma obrigação social.
*Jose Antonio de Sousa Neto: Professor da Escola de Engenharia de Minas Gerais (EMGE). PhD em Accounting and Finance pela University of Birmingham no Reino Unido.

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