Será que todo mundo está recebendo como eu o milagre de uma segunda chance?
Faça tudo diferente do que você já fez que lá na frente tudo vai ser diferente também.
Por Ricardo Soares*
Acordei, cocei os olhos, sentei na cama antes de levantar. Num primeiro momento não reconheci as paredes em volta do quarto. Sequer reconheci a cor das paredes e quando me dei conta vi que estava sentado numa cama de solteiro. Pus os pés no chão e não encontrei meus chinelos e nem meus óculos na cabeceira ao lado. Mesmo assim fui até o banheiro, escovei os dentes e me reconheci diante do espelho. Achei esquisito porque não vi os cabelos brancos, mas como ainda estava entorpecido pelo sono e precisava de um café para acordar de vez fiquei na minha.
No momento em que sai do quarto aí me dei conta que não reconhecia a casa. Não descia uma escada para ir para a cozinha mas entrava num corredor, virava a direita e lá estava ela. Uma cozinha diferente da minha, com objetos diferentes dos meus. Uma cafeteira de louça antiga, objeto que nunca tive, pairava sobre a pia. Pão fresco sobre a mesa. Tudo diferente. Onde está o pão de forma sete grãos? Onde estava a minha "bialetti"?
Quando não reconheci nada em volta de mim e esqueci do café aí tomei um susto. Afinal onde eu estava? Meu relógio não estava no pulso e eu tinha me habituado há muitos anos a dormir com ele no pulso da mão direita. O celular também não estava ao lado da cama e por fim me dei conta que estava em um apartamento pequeno, jeitoso, modesto e não na minha casa rodeada de árvores e com cachorros latindo pela manhã.
Aturdido abri a porta da área de serviço e olhei em volta. Dois elevadores e a indicação que eu estava em um sétimo andar. Aos meus pés um exemplar da "Folha de S.Paulo" sobre um tapetinho de entrada. Mas há muitos anos eu não assinava mais a "Folha de S.Paulo". O que fazia o jornal ali naquela manhã? Na dúvida peguei o exemplar que jazia aos meus pés e fui direto para a manchete que anunciava as mais recentes medidas econômicas do governo Sarney. Aí o coração veio a boca. Onde eu estava enfim?
Voltei para dentro e me joguei num sofá vermelho. O telefone, também vermelho, tocou. Minha mãe do outro lado da linha me pedia um favor trivial quando eu fosse de São Paulo para Belo Horizonte na próxima semana. Mas, como assim? Minha mãe deveria estar morta e não estava nos meus planos ir para BH nos próximos dias. Aproveitando a carona do telefonema me abri com ela e lhe falei do meu estranhamento. Tentei explicar que eu vivia em 2016, que o neto dela já era um adulto, que eu tinha dois cachorros vivos e dois sepultados no terreno que circunda a minha casa, que o Brasil vivia uma crise institucional, que eu estava preocupado com o fim da minha profissão e que estava estranhando tudo aquilo que tinha acontecido desde que eu acordei. Ela sem se abalar, como se esperasse meu desabafo, disse com a maior tranquilidade:
--- Eu sabia que isso ia acontecer. Me avisaram que era inclusive para poder te ajudar. Nada daquilo que você vivia até ontem é verdade. A verdade começa aqui e agora em 1985. Faça tudo diferente do que você já fez que lá na frente tudo vai ser diferente também.
--- Mas vai melhorar ?
--- Ah filho, isso vai depender do que você fizer, vai depender do que muita gente fizer. Aí vai se ver. O que não dava era para continuar daquele jeito né?
Desliguei atônito e ainda com o telefone suspenso no ar pensei:
"É mãe, continuar daquele jeito não dava. Será que todo mundo está recebendo como eu o milagre de uma segunda chance?".
*Ricardo Soares é escritor, diretor de tv, jornalista e roteirista. Autor de sete livros entre os quais o romance "Cinevertigem". Escreve às segundas e quintas no Dom Total.
Nenhum comentário:
Postar um comentário