sexta-feira, 27 de maio de 2016

Eucaristia: encontro de amor à luz da fé

A comunicação do Deus Criador com a sua criatura é mistério insondável e grandioso.
A Eucaristia não pode ser reduzida a uma formalidade, tirando dela sua essência de ser comunhão, entrega, amor.
A Eucaristia não pode ser reduzida a uma formalidade, tirando dela sua essência de ser comunhão, entrega, amor.
Por Sandra Regina de Sousa*
Escrever sobre Eucaristia não é tarefa fácil para quem quer que seja, pois de algum modo é deparar-se com o fato de que “tudo” já foi sistematizado em categorias teológicas e provavelmente este tema já não apresente o frescor da novidade aos sedentos leitores. Por isso, meu sim ao convite do amigo para escrever este artigo só foi possível, depois de saber que não era exigido a cientificidade e eu poderia me expressar livremente, falando a partir da minha experiência de vida com a Eucaristia. Também creio não ser fácil escrever sobre certas experiências vividas na dimensão espiritual, pois essas se inscrevem em outra lógica que não é a da racionalidade ocidental, tão carente de explicações, argumentações e estruturação do pensamento.
A comunicação do Deus Criador com a sua criatura é mistério insondável e grandioso, transformador da vida de tantos seres humanos que se deixam conduzir por suas mãos ao longo da História da Salvação. É experiência que não cabe totalmente em palavras. Portanto, o que experimentei com a Eucaristia não se resume ao que eu aqui conseguir ordenar em frases. Não posso me deter nisso e assim correr o risco de esvaziar o sentido do amor de Jesus Cristo, Corpo e Sangue doado, que se revelou em minha existência tão comum quanta à de qualquer outro mortal.
Nasci em uma família católica e desde pequena íamos todos juntos, de mãos dadas e corações unidos, participar da Missa. Num determinado tempo dessa infância, meu irmão mais velho foi para o seminário e a falta dele me fez ver, não naquela época, é claro, que a grande celebração vivida por nós se chamava “comunhão”, e na Eucaristia, encontrava um sentido novo a cada domingo.
Da minha Primeira Eucaristia não tenho nenhuma lembrança sequer. Nada que justifique a atração irresistível que senti e continuo sentindo por este mistério de amor. No entanto, quando fui crismada, aos 11 anos de idade, diante de toda a nossa euforia adolescente, mais interessada na festinha que teria depois, do que nas palavras do Bispo, eu na inocente condição de crismanda, me dei conta de que algo mais profundo me tocou de maneira muito diferente. Ao terminar o rito, meu coração só pedia para ser catequista. Creio que naquele dia especial escutei o chamado de Deus pela primeira vez. O certo é que depois de muitos anos de história entendi o que me impulsionou a passar para outras crianças tudo o que dentro de mim aquele chamado despertara.
Essa primeira experiência me abriu o caminho para outras. Na fase mais crítica da adolescência eu ia à missa todas as manhãs por um desejo próprio. Beber da fonte do Mistério alimentava meu espírito sedento e inquieto, embora só muitos anos depois, nas aulas de Teologia Eucarística, é que compreendi, de fato e racionalmente, o que eu experimentara naquela época. Essa foi a base que me sustentou na juventude diante de tantas contradições impostas pela vida, ou fruto de escolhas erradas. As experiências dolorosas são a única prova suficientemente segura de que superá-las integralmente só é possível se houve anteriormente um encontro com o Cristo da fé. É real na medida em que se vive, e não enquanto se pensa ou se fala.
Vivendo uma experiência de profunda dor existencial ao mergulhar inteiramente no mundo das drogas, conheci o porão úmido e fétido do meu lado sombra. Experimentei na pele, nos olhos, no corpo e na alma, a intensidade de crer em meio a escuridão e a dor. O vazio final era o momento mais fecundo onde a fé se firmou como coluna, cada vez mais forte. Não era possível duvidar de Alguém que me amou tanto e me mostrou isso pela vida afora. Mas, ao mesmo tempo, era dilacerador acreditar nisso de dentro de um abismo.
No entanto, misteriosamente, Aquele a quem se grita volta-se para o coração que grita e responde com o abraço e o amor de um Pai, fazendo com que esta passagem obscura seja clarificada. Na experiência do desamor a Eucaristia foi libertação das cadeias que me prendiam ao submundo do meu egocentrismo. A partir de então, fiz um caminho de reconstrução de mim mesma, tijolo por tijolo, superando medos, inseguranças, desolações, dúvidas, recuperando devagar o sentido mais profundo da minha existência nesta terra.
Hoje, depois de tanto buscar pela vontade de Deus, encontrei-me como missionária na Amazônia, e pude entender que todo o itinerário feito com tanta sofreguidão para achar meu caminho, foi tecido com linha e agulha pelas mãos amorosas do Pai. A experiência de estar nessa missão suscita perguntas muito sérias. Percorrendo distâncias, enfrentando desafios, carências, doenças, perigos. Adentrando na vida de comunidades há muito esquecidas, abandonadas por completo pela Igreja. Uma dura realidade que coloca à prova as palavras bonitas escritas em tantos documentos. Como conceber hoje uma Igreja em que no seu centro está a Eucaristia, memorial de uma entrega, mistério de amor, alimento espiritual, e que não chega a tantas comunidades por falta de ministros ordenados que infelizmente não querem se doar nessas realidades sofridas?
Aqui, vi de perto comunidades que há muitos anos não se alimentam do Corpo e do Sangue do Senhor. No entanto, nos gestos mais cotidianos as pessoas são eucaristia, ação de graças, entrega fecunda umas para as outras. Por outro lado, tantas comunidades que se alimentam da Eucaristia, mas não fazem um encontro verdadeiro com Jesus Cristo. Servem por preceito, acreditam por tradição, vivem cristalizadas na obrigação sacramental, mas sem mergulhar na experiência da graça que o sacramento possui em si mesmo. Prendem-se a uma fé devocional não transformadora que vive de festejos, mas de pouco amor uns pelos outros e com as mãos carregadas de pedras.
Por todos os lugares que passo minha pergunta é sempre a mesma: O que aconteceu conosco? Por que nos alimentamos do Corpo e Sangue de Jesus Cristo que se deu inteiramente por amor e pediu que “nos amassemos uns aos outros” e nós não experimentamos um encontro com Ele e, por conseguinte, não aprendemos a amar como Ele amou? Fazemos memória do seu gesto de amor e não nos empenhamos em seguir seus passos?
Assim, nestas terras de belezas e desafios tenho aprendido que a Eucaristia não pode ser limitada ao espaço do Templo, dependente das mãos ungidas dos sacerdotes, escrava de um rito, que por falta de sentimento e entendimento, não possibilita aos que creem uma experiência mais profunda e intensa, tornando-se enfadonho e sem sentido. Não é possível reduzi-la a uma formalidade, uma lei a ser cumprida e tirar dela a sua essência de ser comunhão, entrega, amor. E indo mais longe, ao pensar nos que não têm acesso a ela, crer que o Corpo e o Sangue de Cristo se faz presença de outra forma nas comunidades, no coração de cada um, criado à imagem e semelhança da Trindade.
O amor do Deus trinitário na sua expressão mais genuína é o sentimento que predispõe a alma a desejar o bem. Tudo nasce dele e nele é. É fonte de onde jorra limpidamente a vida, pois, ao que O experimenta nas profundezas do espírito, Ele quebra os grilhões da cegueira e desata os nós da ignorância. Pacifica as emoções, ordena os sentimentos e cura as feridas. Nele o ser é purificado como o ouro no calor do fogo, libertando-se do mesquinho ego e tornando-se Eucaristia no coração do mundo. 
Corpo doado. Ó sangue derramado no caminho da dor. Diluído na água do medo, entrega fecunda no cálice da bênção. Em ti, a cor amável da bondade, frágil e desnuda, mas vitoriosa diante do beijo que trai e do valente que nega. Espalhas no universo, preciosíssimo sangue, a vontade confiante e inquieta de mudar direções, de amar incansavelmente sem leis que subjugam; sem preceitos esvaziados de sentido; sem a covardia que despedaça o desejo mais sincero do coração de diluir-se em ti, sangue amoroso, vertido na cruz do perdão, do corpo inerte do Amado.
*Sandra Regina de Sousa é leiga missionária. É mestra em Teologia, pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia, pela dimensão da espiritualidade. É cantora, compositora e formadora de catequistas.

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