sábado, 28 de maio de 2016

O sabor do pão repartido


Por Marcelo Barros
Em todas as culturas os momentos fortes de alegria e união se celebram com uma refeição ou algum alimento repartido. Quase todas as tradições espirituais têm uma partilha de comida como sinal de comunhão. Para as Igrejas cristãs, a ceia de Jesus é o sinal de sua presença em nós e entre nós. Desde a Idade Média, anualmente, a Igreja Católica dedica uma festa à Eucaristia. Nesse ano, a festa do Corpo e Sangue de Cristo se realiza nessa quinta feira. Quando foi criada, a intenção era fortalecer nos fieis a devoção à presença de Jesus na eucaristia. Atualmente, ela contém duas dimensões importantes para a fé:
1o – a importância do corpo. Ao adorar o corpo de Cristo, somos chamados a perceber que somos templos do Espirito e o nosso corpo merece cuidado e todo o respeito à sua dignidade sagrada.
2o – ao fazer do alimento um sinal de sua presença em nós e entre nós, Jesus quis dar ao mundo uma profecia do estilo de vida que devemos assumir: uma vida partilhada.

De fato, todas as Igrejas chamam esse evento de “comunhão”. Esse termo evoca uma “comum união”, mas pode também vir da expressão latina “comum múnus”. Comungar o múnus é assumir o peso da vida, durezas e sofrimentos que cada irmão e irmã carrega.
Conforme o testemunho do Novo Testamento, no primeiro século, as comunidades cristãsrealizavam a ceia de Jesus nas casas uns dos outros, como expressão de uma vida partilhada. Ao repartir o pão, a comunidade fazia memória da doação que Jesus fez da sua vida edava um sinal de que Deus quer que toda humanidade viva uma economia de partilha e de solidariedade. Durante os séculos, ao se inserir em cada cultura, as Igrejas fizeram da ceia de Jesus um culto mais formal. Pouco a pouco, a reunião que, no início, era mais simples e convivial,se tornou parecida com os cultos de outras religiões antigas. Os serviços de coordenação tomaram uma dimensão sacerdotal, como nos cultos das antigas religiões. A teologia passou a explicar a ceia como atualização do sacrifício da Cruz.

Atualmente, essa linguagem do sacrifício deveria ser revista para que ninguém pense que Deus Pai precisaria da morte do seu próprio filho para salvar o mundo e nos reconciliar consigo. Não podemos negar o valor da história e nem reduzir o sentido mais profundo do mistério que celebramos. No entanto, ao dar graças a Deus por sua presença em nós, em cada eucaristia, fazemos a memória de Jesus não apenas em repetir suas palavras, mas em tomar o mesmo caminho dele, caminho de amor, doação aos outros e serviço. Por isso, temos de encontrar formas mais expressivas para ligar de modo mais profundo a eucaristia que celebramos com a realidade que vivemos ecom o caminho que a sociedade toma. Precisamos reencontrarformas de celebrar mais simples e conviviais. A ceia de Jesus deve manifestar a dimensão carinhosa que o evangelho de João mostra que o Mestrerevelou aos discípulos que ceavam com ele na noite da Páscoa. Todas as orações antigas da Igreja e até hoje a primeira oração eucarística do Missal Romano lembram que, na missa, os fieis participam da ação de graçasficando de pé, em redor do altar.

Em 2004, o papa João Paulo II escrevia: “A eucaristia não é somente expressão de comunhão na vida da Igreja. É também projeto de solidariedade da comunidade cristã com toda a humanidade. Na celebração eucarística, a Igreja renova continuamente a sua consciência de ser “sinal e instrumento”  não somente da íntima união com Deus, mas também da unidade de todo o gênero humano” (Carta apostólica Mane Nobiscum, Domine, 17). 

No século IV, ao falar aos cristãos batizados na noite da Páscoa, o bispo Santo Agostinho afirmava: “O pão da eucaristia representa o que vocês são: o corpo de Cristo, ou seja, a sua presença transformadora para o mundo. Então, se vocês tiverem recebido bem o alimento que é o próprio Cristo que se doa a nós, vocês se tornarão isso que vocês receberam. Vocês são o que vocês receberam”.
Marcelo Barros
Marcelo Barros é monge beneditino e teólogo especializado em Bíblia. Atualmente, é coordenador latino-americano da Associação Ecumênica de Teólogos/as do Terceiro Mundo (ASETT). Assessora as comunidades eclesiais de base e movimentos sociais como o Movimento de Trabalhadores sem Terra (MST). Tem 45 livros publicados dos quais está no prelo: "O Evangelho e a Instituição", Ed. Paulus, 2014. Colabora com várias revistas teológicas do Brasil, como REB, Diálogo, Convergência e outras. Colabora com revistas internacionais de teologia, como Concilium e Voices e com revistas italianas como En diálogo e Missione Oggi. Escreve mensalmente para um jornal de Madrid (Alandar) e semanalmente para jornais brasileiros (O Popular de Goiânia e Jornal do Commercio de Recife, além de um jornal de Caracas (Correo del Orinoco) e de San Juan de Puerto Rico (Claridad).

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