Pobres são aqueles e aquelas à beira da morte, como consequência da injustiça e desamor.
A responsabilidade recai sobre os ombros destes imitadores e imitadoras de Judas.
Por Felipe Magalhães Francisco*
Esta fala de Jesus nos engasga! Afinal, como ter esperanças de que possamos viver numa sociedade mais justa e igualitária, quando o próprio Filho de Deus, autor de toda justiça e anunciador do Reino de Deus, assevera-nos verdade tão cruel? Essa é uma situação na qual a fé precisa ser reafirmada, ainda que a esperança possa estar em meio à densidade de um tempo nebuloso. Esperar contra toda a esperança é caminho fundamental para que possamos seguir, no mundo, reafirmando nossa fé num novo céu e numa nova terra, tal como anunciado no Apocalipse (21,1).
Detenhamo-nos, por um momento, no contexto em que Jesus afirmou tal coisa. Trata-se do capítulo 12 do Evangelho de João, que narra um jantar, na casa de Lázaro, em Betânia, ocasião em que Maria unge os pés de Jesus com um caro perfume e os seca com os cabelos. O texto põe na boca de Judas Iscariotes a seguinte indignação: “Por que este perfume não foi vendido por trezentos denários para se dar aos pobres?” (Jo 12,5). Sabe-se que essa indignação é falsa, afinal o próprio texto continua: “Falou assim, não porque se preocupasse com os pobres, mas, porque era ladrão: ele guardava a bolsa e roubava o que nela se depositava” (v. 6).
A resposta de Jesus para que o falso indignado não reprimisse a ação de Maria, irmã de Lázaro e Marta, aponta para o verdadeiro discipulado da mulher e expõe as falsas intenções de Judas, que se mostra um falso discípulo. Ora, a unção feita em Jesus aponta para sua própria morte. Morte que outro motivo não apresenta senão como consequência de um amor integral devotado aos pobres do mundo, e revelador da injustiça por parte dos poderosos. Nesse sentido, a afirmação feita por Jesus, de que os pobres sempre estariam presentes no mundo, é de denúncia. O descompromisso para com os pequenos do Reino, os pobres do mundo, também está presente entre aqueles que seguiam Jesus de perto, que se sentavam com ele à mesa.
A vida inteira de Jesus significa o resgate da dignidade dos pobres, vilipendiada pela força e pelo poder de uns poucos. Sabemos que Jesus é, de fato, o enviado por Deus, como inauguração de um novo tempo, o tempo do Reino, quando os “cegos recuperam a vista, paralíticos andam, leprosos são curados, surdos ouvem, mortos ressuscitam e aos pobres se anuncia a Boa-Nova” (Mt 11,5). Ser fiel a Jesus e àquilo que anuncia e faz é continuar sua missão, coisa que Judas não o faz. A traição do falso discípulo não significa apenas vender a cabeça do Mestre, ao custo de trinta moedas de prata, mas também não ser leal ao compromisso de Jesus pelo Reino, fingindo dissimulado interesse pelos pobres.
A denúncia de Jesus é forte e alcança discípulos aos moldes de Judas ainda hoje. O mundo está cheio deles e a Câmara dos Deputados, com sua Bancada da Bíblia, também. Fundamentalistas evangélicos e católicos significam retrocesso na missão evangelizadora da Igreja de Cristo e, no caso dos deputados e deputadas igualmente fundamentalistas, significam atraso à nação brasileira e sofrimento para os pobres. Pobres, vale ressaltar, são todos aqueles e aquelas à beira da morte, como consequência da injustiça e do desamor. Tal como Judas, esses deputados e deputadas discursam e agem com falsas indignações em favor dos pobres, mas verdadeiramente interessados em si próprios e naqueles que lhe são iguais.
A infidelidade desses homens e mulheres à mensagem cristã é constatação da asseveração de Jesus, a respeito de que pobres sempre teremos entre nós, pois se assim acontece, a responsabilidade recai sobre os ombros destes imitadores e imitadoras de Judas. O ódio às minorias, cotidianamente discursado e compactuado por esses senhores e senhoras, mata: a existência do machismo, do sexismo, da homofobia, da lesbofobia, da transfobia, do racismo, da intolerância religiosa e do descaso pelos pobres outros, dependentes primeiros dos poderes públicos, cotidianamente perpetuados pelos falsos discípulos e discípulas de Jesus, é prova de que a denúncia do Filho de Deus ecoa ainda entre nós.
Estarrece-nos que, depois de tanta luta por parte das mulheres, empobrecidas social, cultural e humanamente pelo machismo e sexismo, para garantir direitos de igualdade, um deputado – Flavinho (PSB-SP), ligado à Canção Nova – use da tribuna da Câmara Federal para perpetuar um discurso que ultrapasse o mau-caratismo e a hipocrisia de Judas. Segundo o deputado, as mulheres verdadeiras não querem ser empoderadas, mas amadas e cuidadas, o que, em outras palavras, significa que elas devem permanecer dependentes dos homens, pois são frágeis e incapazes.
Interessante o ecoar do texto de João 12: Maria decide usar de um perfume caro, para demonstrar hospitalidade para com Jesus; após Judas se queixar, Jesus reforça o protagonismo de Maria, que pode decidir por si própria sobre como se comportar. De que lado o deputado católico está: de Jesus, que reafirma o papel da mulher, ou de Judas, que rechaça esse papel, em nome de uma causa injusta? É realmente uma pena que um parlamentar, quando na possibilidade de testemunhar o Evangelho que eleva a dignidade dos empobrecidos, opte por perpetuar uma triste teia de injustiça que o próprio Mestre percebeu: enquanto houverem Judas impedindo a realização do Reino, pobres existirão!
*Felipe Magalhães Francisco é mestre em Teologia, pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia. Coordena a Comissão Arquidiocesana de Publicações, da Arquidiocese de Belo Horizonte. Coordena, ainda, a Editoria de Religião deste portal. É autor do livro de poemas Imprevisto (Penalux, 2015). Escreve às segundas-feiras.
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