quinta-feira, 12 de maio de 2016

Uma experiência de Alfabetização

José Olímpio de Sousa Araújo*
Novembro de 1992.  Eu era diretor da Escola Sebastião de Abreu, no bairro de Bom Jardim.  Mas o cenário deste fato foi outro: Bom Sucesso, Escola França Diogo.  O Diretor deste estabelecimento alertou-me que meu filho Othon, estudante de seu estabelecimento desde o início do ano, não tinha a menor condição de passar para a 3ª série, aliás, nem deveria ter cursado a 2ª: não se havia sequer iniciado o processo da alfabetização. (Viera transferido, devido à nossa mudança de endereço, com aprovação, de outra escola). O colega, meu conhecido de pouco tempo, após votar-me apreço e credibilidade profissional, delegou-me a decisão, ou melhor, desafiou-me:  “O senhor é quem vai resolver, aprovamos o garoto... ou é mais correto que repita o ano?”
Eu, pedagogo, professor, com experiência em Didática e Prática de Ensino, administrador escolar, etc, surpreendido com  tal situação, na minha própria casa!... Casos semelhantes, com filhos alheios, eu soube acompanhar, aconselhar, decidir... A questão desta feita era com um  filho meu, e a mim cabia solucionar. Vi-me, assim, envolto em múltiplos aspectos: moral, ético, profissional, afetivo... E o pior: não vi o nascedouro nem o formar-se do problema, pode?...  Entre envergonhado e atônito, sem direito de tempo para pensar, assumi: “Vamos evitar que ele perca o ano, vou ajudá-lo a recuperar-se.” Ainda escutei daquele dono de escola, sem formação superior, mas inteligente e com uma sábia postura, adquirida na experiência, outras colocações que, ao contrário do propósito explicitado, pareceram-me mais ferinas que elogiosas.
Era eu um operário da educação, habituado aos três expedientes diários, deixando, consequentemente para a mãe a tarefa de acompanhar o estudo dos filhos; ela, além do lar, também trabalhava fora um expediente.  Bem, não adiantava caçar culpados, nem causas, nem desculpas, estava posto o desafio.  Teria que fazer agora o que costumava reclamar dos pais da escola que dirigia, os quais em situação socioeconômica inferior à minha, apresentavam, em dose bem maior, dificuldade de acompanhamento aos estudos dos filhos.  
Foi, talvez, a oportunidade mais real em que agi como pedagogo em toda a minha vida. O ferreiro viu-se obrigado a usar em casa também o material que vendia, substituir os espetos de pau... Era urgente e imperioso sanar a grave deficiência.
Da surpresa à reflexão, da reflexão à ação. Primeiro um diálogo aberto, mas o mais forte possível, bronca, muita bronca. Consegui controlar-me (talvez eu tivesse mais culpa que ele), e busquei sentir o nível de interesse do aluno, mexer, trazê-lo para protagonista do plano que eu começara a arquitetar. Se ele tinha o desejo, a intenção de resolver um problema que era dele e que só seria eliminado se ele de fato quisesse.
Esse passo inicial foi alentador. E fui alimentando un sentimento de corresponsabilidade no decorrer do processo.  Elegi, depois de rápida análise, a Cartilha do Marinho, da Revista Pedagógica Brasileira, como o instrumento básico e confiável na caminhada.  Reorganizei meus horários profissionais e passei a trabalhar com Othon duas seções diárias e, depois de cada, deixando orientada uma tarefa a ser cobrada na seção seguinte.  O objetivo a ser alcançado nessa primeira etapa era a identificação das letras e o domínio da silabação; utilizei o tradicional método fonético revestido numa perspectiva construtivista, já inaugurada no diálogo inicial.
Papel, lápis, borracha e muito esforço, com atividades sequenciadas. Meu filho surpreendeu-me. Embora criança, mostrava decisão e firmeza, inclusive nos meus momentos de impaciência, que lhe custaram gritos, ameaças e até palmadas (perdão, mas houve algumas palmadas, graças a Deus, muito poucas). Jamais reclamou da supressão das férias, só em algumas vezes, cansado, quando eu “puxava” mais, pedia pausa. Era admirável sua motivação, a interação com o “mestre”, a adesão à metodologia... Os progressos paulatinos eram comemorados por docente e discente.
Fevereiro trouxe o início das aulas, e o garoto já dominava o mecanismo da silabação, lia e escrevia muitas palavras e até frases.  Ao início da segunda etapa, a continuidade do processo de alfabetização rumo à leitura e produção de texto, juntou-se o acompanhamento das tarefas da 3.ª série, aliada à minha disponibilidade diminuída (o ano letivo no Sebastião de Abreu também começara). Tive que buscar outras alternativas de horário: ora mais tarde, antes de irmos para o berço, ora acordando mais cedo; sábados, domingos e feriados... Ainda bem que ele tinha facilidade na Matemática, praticamente dispensando-me nesta área. As tarefas de casa vinham com muitos erros e incompletas; no entanto, a tentativa de lê-las e copiá-las já se constituía num avanço extraordinário.  Era considerável e gratificante o progresso, mesmo que estafante a caminhada. Mas não desistíamos. Acredito ser esta perseverança, esta vontade interativa, o principal aspecto a destacar na nossa experiência.
Em julho, novamente os dois sem direito às férias.  Todavia os frutos já alimentavam com  mais substância e sabor nos nossos egos.  Assim é que, no segundo semestre, Othon já conseguiu acompanhar com menos embaraço as atividades de sala de aula.  E foi com  indizível e vitorioso alívio que escutei do diretor, Chico Ferreira, agora mais meu amigo, e da professora (lamentavelmente não lembro o nome) algo mais ou menos assim;  “O aluno ainda não está em condição de acompanhar a 4.ª série, mas, considerando o progresso obtido e a certeza da continuação do reforço em casa, pode ser promovido”. Meu Deus, estávamos conseguindo...
O ano de 94 trouxe para minha família nova necessidade de mudança domiciliar, e, com isto, mais uma mudança de escola para Othon e para a irmã caçula; o mais velho foi morar um tempo com a avó e pôde, assim, permanecer no mesmo colégio.  Recordo as palavras da professora da 4.ª série, na Escola Centro dos Retalhistas, no Benfica, após relatar-lhe a experiência que vivenciamos, para deixar-lhe claro que meu filho necessitava de atenção especial: “Eu quero contar só com o apoio da família, o restante é comigo;” E, já no primeiro  mês, o significativo comentário do Othon:  A D. Elizabete (este o nome da eficiente e saudosa professora, já está com Deus), exige muito, mas eu gosto dela.
Na primeira reunião de Pais e Mestres, da minha parte não permiti que, ali, se reafirmasse o que escreveu Drumond, no início de uma de suas belas crônicas: Na reunião de pais só havia mães. “E aí, D. Elizabete, o que está achando do Othon?” – “Está indo muito bem... Ele é muito inteligente! Tem só que diminuir a preguiça... O Senhor sabia que ele é bamba em Matemática?...”
A partir do segundo semestre pude restringir minha participação ao acompanhamento normal, estava concluída, com sucesso, nossa experiência de alfabetização.  Othon passou sem dificuldades para a 5.ª série e, da mesma forma, concluiu regularmente o ensino fundamental no Colégio Rui Barbosa (hoje extinto) e o ensino médio no Colégio Zênite (hoje Christus Benfica).  Atualmente (2014), após ter cursado, há alguns anos, o Curso Tecnológico de Mecatrônica no CEFET (hoje, como muda de nome, IFCE), é prestigiado e eficiente profissional na área. 
Sei que o que acabo de contar é uma experiência simples, sem cunho científico, mas marcou profundamente este educador e pai. É tão somente um depoimento, nada acrescentei, nada reduzi aos fatos.  Move-me aqui, tal qual ocorreu quando a expus, à época, aos meus colegas professores, numa reunião pedagógica na Escola Sebastião de Abreu, a esperança de que pais e educadores reflitam na necessidade de um envolvimento efetivo, afetivo, interativo, na construção de uma aprendizagem significativa e eficiente. É preciso ousar mais, afinal de contas, a repetência, além de custosa para todos os envolvidos no processo, é, acima de tudo, torturante para o aluno.  É uma perda dificilmente recuperável, um atraso incompatível com a época em que vivemos.

*Professor e administrador escolar Aposentado
Membro-correspondente da Academia Limoeirense de Letras, Secretário da Academia Metropolitana de Letras (AMLEF)
Coautor dos livros “Desenvolvendo a Habilidade de Escrever” e “Ortografia Atualizada”

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