sexta-feira, 24 de junho de 2016

Encontrar-se com Deus na pós-modernidade

domtotal.com
A oração cristã é momento de diálogo com Deus.
O consumo dá uma impressão momentânea de bem estar.
A oração cristã é momento de diálogo com Deus.

Por Tânia da Silva Mayer*

O ser humano pós-moderno, mergulhado em muitas crises, também vive uma crise de sentido. As verdades e os dogmas preestabelecidos, os sistemas bem definidos, aos poucos, vão perdendo a credibilidade da qual gozaram durante séculos. As religiões “tradicionais” também perdem a credibilidade por parte de seus fiéis. Suas doutrinas e posturas enrijecidas, e o não diálogo com o mundo e as sociedades contemporâneas, conduzem as religiões a esse fenômeno de incredulidade a respeito de suas estruturas. Por tudo isso, elas são cada vez mais secularizadas pelo ser humano que busca o sentido da sua existência, sem prender-se a padrões preestabelecidos.

Por sua vez, o mercado orienta a vida das pessoas, fazendo-as pensar que encontrarão o sentido da vida e a solução para seus problemas com o uso cotidiano de um “cartão de crédito”. O consumo dá uma impressão momentânea de bem estar, mas o que experimenta-se depois de uma compra é a frustração e o vazio existencial que mais uma vez não pode ser preenchido. Também a tecnociência promete o controle efetivo sobre a realidade da vida, ela proporcionará uma maior durabilidade desta por meio de suas técnicas precisas. A internet, que muito avançou dos grandes centros urbanos para os interiores e periferias brasileiras, inaugura um novo mundo de possibilidades: de ser, de estar, de pensar, de conhecer e fazer na instantaneidade de um “clique”. Ela que promete aproximar as pessoas e as realidades distantes, promove, abundantemente, a distância entre as pessoas e grupos, isolando-os em seu mundo real-virtual.

O realizar-se com os outros no mundo, que é como a realização originária de humanidade, vai perdendo-se aos poucos e criando pessoas distantes: do outro, do mundo, de Deus e de si mesmas. Neste cenário, o ser humano procura as religiões para fundamentar sua existência. No entanto, essa procura pelo “sagrado”, pelo “transcendente”, por “Deus” é remediada numa espécie de “self-service” religioso. Todas as religiões, crenças e fés podem contribuir na construção do sentido da vida de uma pessoa, e, numa situação de “desespero existencial”, ela beberá em todas essas águas. Também os cristãos buscam cada dia mais dar razões da sua Esperança. Esta procura não se realiza somente em um viés acadêmico-científico, mas, sobretudo, num viés experiencial. Karl Rahner salientava que “o cristão do futuro ou será um místico que experimentou algo ou não será propriamente um cristão”. Nessa esteira, compreende-se que a chave para a vida de fé das cristãs e dos cristãos contemporâneos é a experiência de Deus, mas uma experiência tal que provoca o âmago da existência humana promovendo-a enquanto existência humana.

Precisamente, essa experiência de Deus no cristianismo é a relacionalidade com o Deus de Jesus Cristo e com o Espírito Santo. Essa experiência trinitária cristã é o que chamamos formalmente de “espiritualidade cristã”. A espiritualidade cristã é a vida vivida segundo o Espírito do Cristo Jesus ressuscitado. Ela realiza-se na existência histórica do homem e da mulher que procuram viver a fé comunitariamente, num processo de abertura à família humana, até que a promessa de um Novo Céu e Nova Terra se concretize de maneira definitiva. Uma espiritualidade que pretenda ser cristã fundamenta-se nas narrativas sagradas da fé que contam a história de amor de Deus por seu Filho e, Nele, pela humanidade inteira. É partindo da premissa da Encarnação de Deus, consumada no batismo da Cruz, que a espiritualidade cristã adquire sua característica libertadora que não pretende outra coisa que a vida plena e abundante para todos, ou seja, uma vida integrada e humanizada.

O cristianismo é uma experiência de amizade com Deus que se autocomunicou, que falou e se disse definitivamente ao ser humano como Amor. Precisamente, Ele comunicou-se a si mesmo em Jesus, a Parábola feita carne para nos revelar os mistérios divinos. Em Jesus, Deus falou à humanidade como se fala a um amigo, desejando tomá-la em um diálogo de aliança e não num monólogo religioso, permeado por ruídos poluidores. A oração cristã é espaço para fomento da amizade com Deus. E esse fomento da amizade é o reencontrar-se com Aquele que dá sentido à vida. A oração cristã é momento de diálogo com Deus, fundamentado na escuta, no silêncio, na ação de graças e súplicas. No entanto, é importante recordar que a tradição cristã cuidou de favorecer momentos específicos, sobretudo as horas do dia, para que o ser humano pudesse conversar com Deus, louvando-o por todas as suas maravilhas. Isso promoveu estruturas rituais de oração muito felizes, no entanto é importante recordar que o encontro com Deus e o diálogo com ele também se dá às margens e no comum da vida.

É o que ocorre com Zaqueu (cf. Lc 19,1-10) que, ao procurar ver quem era Jesus, foi surpreendido pelo autoconvite do mestre de hospedar-se em sua casa. A proximidade de Jesus é o que promove a alegria e a salvação desse reconhecido pecador. A samaritana também se encontrou com Jesus no comum da vida (cf. Jo 4,1-30). Num trabalho cotidiano, foi buscar água no poço e conheceu ali aquele que mata a sede, porque é quem confere um sentido novo a todas as estruturas e relações humanas. Não é na capela de uma igreja, nem tampouco em momentos de adoração especificados em um cronograma paroquial que a samaritana e Zaqueu encontram o sentido para as suas existências. Claro que esses locais também podem favorecer um encontro transformador e de sentido. Mas não devemos excluir o fato de que numa hora comum do dia, na terra ou no asfalto, qualquer pessoa, na correria da vida e na peleja cotidiana, pode encontrar-se com Aquele que dá sentido à vida ressignificando o próprio modo de ser encontrado. 

*Tânia da Silva Mayer é Mestra e Bacharela em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (Faje); Cursa Letras na UFMG. É editora de textos da Comissão Arquidiocesana de Publicações, da Arquidiocese de Belo Horizonte. Escreve às sextas-feiras.

Nenhum comentário:

Postar um comentário