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Gosto de pensar que nossos olhos não mentem.
Talvez um dos ensinamentos da encarnação seja, justamente, esse convite à fuga dos estereótipos.
Por Fabrício Veliq*
“Disse Felipe: Senhor, mostra-nos o Pai e isso nos basta. Respondeu-lhe Jesus: há tanto tempo estou convosco, e ainda não me conheces, Felipe? Quem me viu a mim, viu o Pai; como dizes tu: mostra-nos o Pai? Não crês que eu estou no Pai e que o Pai está em mim? As palavras que eu vos digo, não as digo por mim mesmo; mas o Pai, que permanece em mim, é quem faz as suas obras. Crede-me que eu estou no Pai e que o Pai está em mim. Crede, pelo menos, por causa das mesmas obras”. João 14: 8-11.
À primeira vista, a resposta de Jesus me chama muita atenção nesse texto. Imagino a feição de Jesus ao responder a Felipe, algo como: Poxa vida, Felipe, você está comigo já há quase três anos e ainda não entendeu o que venho falando com você constantemente? Como assim, mostra-nos o Pai? Poxa vida, Felipe!
Porém, antes de sair tacando pedras no Felipe, pensemos sobre o contexto em que ele vivia. Felipe era um judeu e, como judeu, tinha uma visão bem estabelecida para si de como seria o Pai. Havia sido criado tendo o Pai como o Senhor onipotente, o criador dos céus e da Terra, aquele que fala e os montes estremecem; estava dentro de uma cultura que não esperava que Deus se fizesse humano, um Deus que tinha muito clara a separação entre puro e impuro, que não se misturava com os pecadores, etc. Dessa forma, nada de estranho pedir a Jesus para mostrar o Pai, aquele que Jesus tanto pregava sobre Ele e que todos os judeus conheciam seus feitos maravilhosos desde o Egito. O pedido era normal. Era até digno de exaltação, uma vez que ver o Pai já bastava e nada mais era necessário. Podemos supor que Felipe já tinha em sua cabeça como seria o Pai, como falaria, de que forma se dirigiria a Israel e o salvaria do poderio romano da época, o que, com certeza, na cabeça de todo judeu, seria de uma forma totalmente diferente daquela que aparecia em Jesus.
Penso que, muitas vezes, somos assim também e, se formos atirar pedras no Felipe, comecemos tacando em nós mesmos. Quantas vezes temos nossa visão pré-estabelecida a respeito de Deus, a respeito dos outros, a respeito das situações? Quantas vezes, assim como Felipe, criamos esse pré-conceito de como seria Deus, levando-nos a considerar que só pode ser Deus agindo se for da forma que estamos acostumados a ver e ouvi-lo de acordo com o que fomos ensinados, nos tornando cegos e surdos ante os diversos sinais que chegam até nós da parte Dele?
A resposta de Jesus nos remete a um novo ponto. “Não crês que estou no Pai, e que o Pai está em mim? (...) Crede-me que eu estou no Pai, e que o Pai está em mim; crede ao menos por causa das mesmas obras”. A resposta de Jesus nos convida a um ponto mais profundo de conhecimento de Deus. Ao propor que Felipe cresse por causa das mesmas obras, Jesus pressupõe que é necessário que Felipe conhecesse as obras de Deus. Mas, não conhecia Felipe as obras de Deus como colocamos mais acima, visto ser um judeu e ter ouvido desde pequeno as narrativas da ação de Deus em favor de seu povo? Como, então, Felipe não conseguia enxergar as mesmas obras em Jesus?
Aí talvez esteja o ponto mais crucial que a narrativa nos leva a pensar: a distância entre o saber e o enxergar. É muito comum sabermos que Deus é amor, que Deus salva, liberta e transforma. Sabemos disso e, como cristãos, não temos a menor dúvida que Deus faz todas essas coisas, contudo enxergar que essa salvação divina pode vir de diversas maneiras e que a libertação de Deus pode ser, diversas vezes, da forma que não estamos acostumados exige de nós outro tipo de atitude, ou seja, uma atitude de humildade frente à ação de Deus no mundo em favor da humanidade e da criação.
Estaria Felipe preso em seus pré-conceitos, preso às formas, aos estereótipos da ação de Deus e talvez por isso houvesse nele a dificuldade de ver Deus em Jesus? Aquilo que Felipe tanto almejava ver a ponto de dizer que “isso somente nos basta” estava ao seu lado, conversando com ele sem ele perceber. Não estaríamos nós, muitas vezes, na mesma situação? Querendo tanto alguma coisa a ponto de não perceber que ela está diante de nossos olhos, necessitando somente que deixemos os estereótipos e pré-conceitos de lado e abramos nossos olhos para enxergar?
A outra parte da resposta de Jesus foi: “crede, ao menos, por causa das mesmas obras”.
Gosto de pensar que nossos olhos não mentem. Aquilo que é visto por nós, por mais que queiramos negar, não tem como falarmos que não vimos. Assim, são excelentes indicadores para os humanos. O comportamento, quando visto, é revelador da alma ou, como diria Lao-Tsé: “a alma não tem segredos que o comportamento não revele”. Jesus, em sua fala, convida Felipe a atentar para as mesmas obras feitas por ele e, a partir da conclusão de que as obras de Jesus eram as mesmas obras do Pai, mesmo da forma que Felipe não esperava, percebesse que já estava diante do Pai, tornando seu pedido sem sentido nenhum. Muitas vezes, ao termos um olhar atento percebemos que algumas perguntas e questões, simplesmente, perdem seu sentido, visto a profundidade da questão se revelar diante de nossos olhos.
Essa narrativa se mostra como um excelente convite de Jesus. Um convite ao olhar atento, ao fugir dos estereótipos que criamos para nós e nos quais fomos criados, enfim, um convite à percepção do essencial naquilo que se mostra.
Talvez um dos ensinamentos da encarnação seja, justamente, esse convite à fuga dos estereótipos que marcam tanto a vida humana na sociedade, uma vez que essa encarnação revela um amor tão grande que se faz pequeno igual àquele a quem se ama, obtém tudo através da entrega incondicional, e salva através daquilo que era o fim de todo que não tinha salvação nenhuma.
Tudo diferente daquilo que se esperava que fosse. E por isso mesmo, belo, mistério e divino.
*Fabrício Veliq é mestre e doutorando em teologia pela Faculdade Jesuíta de Belo Horizonte (FAJE), formado em matemática e graduando em filosofia pela UFMG.Atualmente ministra cursos de teologia no curso de Teologia para Leigos do Colégio Santo Antônio, ligado à ordem Franciscana. É protestante e ama falar sobre teologia em suas diversas conversas por aí.
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