terça-feira, 28 de junho de 2016

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O grande Outro
Uma das formas de interpretar este Outro seria no contexto das teorias de Lacan.
Lacan queria dar conta da relação do homem com tudo que determina boa parte do seu modo de ser.
Lacan queria dar conta da relação do homem com tudo que determina boa parte do seu modo de ser.

Por Jose Antonio de Sousa Neto*

Faz alguns anos, em meu processo de formação psicanalítica, tive acesso através do professor Sergio Costa a um dado que me deixou estarrecido: Há algumas poucas décadas, uma entre algumas poucas dezenas de crianças tinha traços psicóticos, mas em passado recente esta proporção passou para uma a cada cinco. Cabe aqui esclarecer que a existência de traços psicóticos não significa que um determinado indivíduo se desenvolverá necessariamente em um adulto psicótico, mas que este indivíduo tem o potencial de se tornar um adulto bastante problemático. Para os que são pais isto quer dizer, por exemplo, supondo que suas crianças sejam psicologicamente saudáveis, que um ou uma entre cada quatro colegas de seus filhos pode ser um indivíduo bastante problemático com todas as implicações que isso pode trazer.

Confesso que na época fiquei um pouco cético com relação a estes dados e proporções. Algum tempo depois, no entanto, em um treinamento realizado pelo governo britânico na Cidade do México para aprimoramento de seus cônsules honorários no atendimento de emergências consulares, fui novamente confrontado com esta realidade. Na ocasião tomei conhecimento de que dois a cada cinco cidadãos britânicos padecem de algum tipo de desafio de ordem psicológica. Estou me referindo aqui, por exemplo, a processos de ordem depressiva em graus diversos e não a psicopatias, mas com a proporção constatada foi inevitável construir correlações.

Levando-se em conta que a ciência hoje estima que a proporção de psicopatas no mundo seja de três a quatro a cada cem pessoas gostaria de fazer algumas reflexões sobre o tema. Imaginem a consequência disso no contexto das organizações, sejam, por exemplo, de natureza familiar, empresarial ou mesmo governamentais. Alguns filósofos, entre eles o Professor Mario Cortella, estimam que ao longo dos últimos cem anos, cinco fenômenos tem sido subjacentes a grandes modificações da sociedade humana independentemente de seus mais diversos matizes culturais:

1) O “desaparecimento” da família como centro de valor. Não me refiro aqui a nenhum formato familiar, mas aos princípios familiares baseados no amor, no respeito e na confiança. Refiro-me à relação entre pais e filhos, à relação entre irmãos e parentes próximos onde a confiança, por exemplo, seja a regra e não a exceção.

2) O “desaparecimento” da fé como pilar central de valores da sociedade humana. Aqui estamos falando, apenas e modestamente, sobre a fé dentro da razão, sem  nem mesmo a pretensão de almejar uma fé transcendente além da razão como a vivida por São Francisco de Assis e tantos outros santos da igreja. Tampouco estamos fazendo aqui referência à fé abaixo da razão que infelizmente caracteriza o fanatismo religioso que ainda prevalece em algumas partes de nosso mundo.

Vale observar neste ponto que a responsabilidade pelo preenchimento destas duas lacunas é hoje frequentemente transferida às instituições de ensino. Educadores compreendem bem a tarefa hercúlea e muitas vezes quase impossível de suprir ou mesmo trabalhar minimamente estas “ausências”.

3) O “aparecimento” da juventude no sentido dos seus “valores”. Todos querem ser jovens. A criança quer alcançar a juventude assim como os adolescentes querem alcançar a “juventude”. O adulto, mesmo o de pouco mais de trinta anos, quer “voltar a ser jovem”. Tudo gira em torno da juventude e de seus “valores”.  A cultura, os hábitos de vida e de consumo, os desejos e os sonhos. Os sábios e anciãos das tribos indígenas dos velhos filmes de faroeste não fazem parte deste modelo. O que conta são os direitos e privilégios. Obrigações e deveres ficam em segundo plano. O valor do sacrifício e do trabalho árduo é frequentemente desconhecido. Evidentemente que estamos fazendo aqui uma generalização. Não estamos abordando ou ignorando neste contexto a juventude como força de renovação e esperança. O objetivo aqui, no entanto, é apenas chamar a atenção para um vetor de “valores” que circundam a quase toda a sociedade.

4) O imediatismo é o quarto elemento que, embora tenha implicações e conexões mais amplas,  frequentemente é ligado ao “aparecimento” da juventude. Tudo é para ontem. O novo celular acabou de ser comprado, mas a nova versão que acabou de sair já é para ontem. Os desejos são para ontem. A satisfação insaciável é para ontem.

5) A Grande Midia completaria e envolveria todos os outros elementos como instrumento de transmissão de valores quando não da criação destes mesmos valores. Aqui para não me estender muito ficarei restrito a um único exemplo. Basta ver quantas vezes o filme “Uma verdade inconveniente” sobre a preservação de nosso planeta foi reprisado nos canais da HBO comparativamente ao filme “O Albergue” que cobre em uma sequencia sombria de terror e perversidade, profundos desvios da psique humana. E isso acessível a crianças e adolescentes no horário vespertino.

Com tudo isso não é difícil identificar uma sociedade enferma e indivíduos adoecidos. É importante para as instituições de ensino e a sociedade se debruçarem sobre estes desafios. Um dos pontos mais interessantes e sugestivos de tudo isso, no entanto, é a denominação que estes filósofos deram ao conjunto destes fenômenos / elementos: O grande Outro.

Uma das formas de interpretar este Outro seria no contexto das teorias de Lacan. Sobre o conceito de “grande Outro”, podemos dizer que Lacan pretendia dar conta da relação do homem com tudo aquilo que determina boa parte do seu modo de ser. É possível observar de forma clara, como argumenta o psicanalista Lucas Nápoli que “a nossa maneira de ser, de pensar e, sobretudo, de enxergar a nós mesmos é fortemente determinada por palavras... Isso mesmo. Palavras que foram enunciadas por pessoas, mas que parecem se organizar de forma independente e agir sobre nós com um peso de verdade, como se tivessem sido ditas por Deus!”. Pessoalmente estou convencido que este processo da palavra é contínuo, permanente e vai muito além da infância.

Talvez o leitor esteja se perguntando neste momento sobre a necessidade de grafar a palavra Outro com O maiúsculo. Pois bem, como resume Napoli de forma muito oportuna e clara, “Lacan fez isso com o propósito de diferenciar esse Outro como lugar da palavra que nos determina dos “outros” (com o minúsculo) que são as pessoas com as quais nos relacionamos, nos identificamos e às vezes nos confundimos. Para Lacan era necessário fazer essa distinção, dentre outras razões, porque o Outro como lugar da palavra possui uma autonomia que faz com que ele não possa ser reduzido ao que os pequenos outros enunciam”. Indo ainda mais longe no contexto da interpretação Lacaniana, o sujeito é um elo do discurso do Outro, onde muitos estão encadeados: “uma família inteira, um bando inteiro, uma facção inteira, uma nação inteira ou a metade do globo”.

Mas se a interpretação psicanalítica do grande Outro é instigante, mais ainda seria uma possível interpretação teológica. As evidências e os fenômenos descritos acima nos levam à constatação de um mundo que parece em passo acelerado se desconectar do espiritual e da Luz (com L maiúsculo mesmo para brincar um pouco com as convenções adotadas por Lacan!).  Mas se implicitamente sugerimos, portanto, que estamos falando do que é oposto à Luz fica então a pergunta: O que, ou mesmo simbolicamente até mesmo “quem”, seria este grande Outro oposto à Luz? Fica a critério do leitor pensar um pouco sobre a possível resposta. No contexto teológico, se a resposta for encontrada, a solução também parecerá evidente.

*Jose Antonio de Sousa Neto: Professor da Escola de Engenharia de Minas Gerais (EMGE). PhD em Accounting and Finance pela University of Birmingham no Reino Unido.

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