sexta-feira, 8 de julho de 2016

Ética cristã e cultura cidadã

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Nenhuma ética pode ser cristã, se não buscar em Jesus o sentido último do ser humano.
Onde há justiça, liberdade e amor, aí estão as sementes da ética cristã e de uma cultura cidadã.

Por Carlos Cunha*

A humanidade se encontra numa situação nova e desafiadora, na qual dúvidas e objeções se difundem, inclusive em relação aos ensinamentos das Igrejas e a participação do fiel enquanto cidadão. Temos o dever, como cristãos, de discernir e investigar a todo o momento os sinais dos tempos, e interpretá-los à luz das Escrituras, para que assim possamos responder, de modo adequado, às perguntas que emergem dos seres humanos acerca do sentido da vida presente, na complexidade das sociedades plurais, e da futura, na esperança de dias melhores, e da relação entre ambas.

A ética cristã, que pesa as obrigações morais das mulheres e dos homens à luz da revelação bíblica, se lança no desafio de buscar novos paradigmas para definição de interlocutores e seus diversos contextos, renovação das metodologias e o estatuto epistemológico – fundamentação filosófica, antropológica e teológica. Os tempos atuais são outros. Se se busca uma ética cristã que tenha o que dizer à contemporaneidade é preciso ressignificar as suas categorias, sem cair no reducionismo e, ao mesmo tempo, explorar toda a potencialidade da mensagem cristã às demandas do sujeito hodierno.

Trata-se de um trabalho a ser sempre realizado em comunhão com as Igrejas e a serviço do ser humano e da sociedade de hoje, para os quais fé e cultura não precisam se opor. É possível e necessário se estabelecer um diálogo fecundo e respeitoso entre a dimensão fiduciária, da crença, e os valores éticos e morais também presentes na cultura cidadã.

Diante de tal quadro, gostaríamos de propor dois desafios:

Primeiro, o desafio do ser humano de se refazer a imagem de Deus. A crise de hoje é fundamentalmente o colapso do humano. Desequilíbrio das bases vitais do ser humano, atingindo suas raízes mais profundas, o seu próprio ethos. Temos dificuldades de avaliação e percepção da realidade. A crise não é pela falta de conhecimento, e, sim, de orientação; não somos ignorantes, estamos confusos. Necessário se faz assumir o seguimento de Jesus Cristo para uma ética cristã pertinente.

Por Jesus Cristo os cristãos aprendem a descobrir quem é Deus, quem são os seres humanos, qual a sua verdadeira origem e destino, qual o significado e o valor do mundo e da história, qual o papel das Igrejas como guia da humanidade em seu peregrinar pelos séculos afora. Todo aquele que segue a Cristo, o homem perfeito, torna-se ele também mais ser humano. O crescimento em Cristo significa, portanto, crescimento em humanidade. Ser cristão não nos separa de sermos mulheres e homens, mas ajuda-nos a sê-los com maior plenitude. Expressão disso se encontra na Constituição Pastoral Gaudium et spes, do Concílio Vaticano II: “Cristo manifesta plenamente o homem ao próprio homem e lhe confere a sua altíssima vocação” (GS 22).

Partícipe da filiação divina em Jesus Cristo, o ser humano encontra nele a plena realização de sua abertura para Deus. A divinização do ser humano no Deus-homem leva a humanização ao ápice. Nenhuma ética pode se declarar cristã, se não buscar em Jesus o sentido último do ser humano. Sem tal identificação não existe ética cristã.

Segundo, o desafio de propiciar o encontro entre a mensagem cristã e as culturas por meio da inculturação dos valores do Reino de Deus. Ao desvincular-se da família e dos afazeres diários, Jesus se entrega ao anúncio do Evangelho. Renuncia à vida voltada para si mesmo e deixa-se conduzir pela lógica do Reino: prática da justiça, da misericórdia e chamado à conversão. Por meio de ensinamentos e ações manifesta a presença do Reino e o projeto salvífico de Deus. Ele cumpre cabalmente o sentido maior do rito batismal proposto pelo Batista. Assume o batismo como sinal de adesão ao projeto do Pai e compromisso pessoal de mudança radical. Concretiza o chamado à missão e acolhe a epifania de Deus: “Este é o meu Filho amado, em quem me comprazo” (Mt 3,17).

O discurso inaugurado e praticado por Jesus abarca o perdão ofertado a todos. Batizados e não batizados são acolhidos pelo Deus salvador, Pai de todos nós. O convite à salvação é oferecido indistintamente aos seres humanos. Cabe a cada um aceitá-lo ou recusá-lo. Deus não força ninguém; apenas interpela-nos com seu amor gratuito. Seu convite pode ser acolhido ou rejeitado. Cada um decide o caminho a seguir. Uns ouvem o chamado e acolhem o Reino de Deus, entram em seu dinamismo e se deixam transformar; outros não dão atenção à boa notícia, não percebem a importância e rejeitam o Reino, não entram na dinâmica de Deus e se fecham à salvação.

A atuação de Jesus visa promover e acolher o governo do Pai: provocar a consciência da liberdade de filhos e filhas, construir a sociedade justa, curar doenças e enfermidades, libertar do mal, dar ânimo e purificar a religião. O Reino não é algo etéreo. O convite de acolher e “entrar” na dinâmica Reino implica em conversão (metanoia) profunda e deixar-se ser transformado e transformar a vida tal como Deus a quer.

Aqueles que se associam ao projeto da implantação do governo divino não podem permanecer à mercê de um sistema que aliena e oprime o ser humano. “Não podeis servir a Deus e ao Dinheiro” (Mt 6,24). Jesus introduziu novo modelo de comportamento social. Não é possível entrar no Reino de Deus sem sair do Reino das riquezas (Mamon). É preciso conversão. A mudança de vida em prol do bem de toda criação é característica da(o) cidadã(ão) do Reino de Deus. Jesus anunciou o Reino do Pai: a transformação radical deste mundo, segundo o projeto libertador de Deus. Onde há justiça, liberdade e amor, aí estão as sementes da ética cristã e de uma cultura cidadã.

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*Doutor em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE), professor visitante no PPG de teologia da FAJE e no Instituto Santo Tomás de Aquino (ISTA). Pesquisador do grupo de pesquisa Fé e Contemporaneidade do Conselho Nacional de Desenvolvimento e Tecnológico (CNPq) e membro da Sociedade de Teologia e Ciências da Religião – SOTER.

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