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- Este cara vem muito aqui. Está sempre meio pelado mesmo, pra mostrar as tatuagens.
Devo estar envelhecendo e desbotando naturalmente.
Por Fernando Fabbrini*
Uma noite de nosso curto inverno encontrava-me numa lanchonete de shopping forrando a barriga antes de retornar pra casa. Fazia frio mesmo; ventava gelado. As pessoas estavam encapotadas, algumas até exageradamente, como se aqui fosse a Sibéria – aberração costumeira que sucede quando os termômetros abaixam um cadinho aqui nos trópicos. Um frequentador ao lado chamou-me a atenção de maneira especial e por dois motivos. Primeiro: tinha ele o corpo inteiramente coberto por tatuagens, do couro cabeludo aos artelhos. Tudo, tudo; área construída completamente decorada. No curto espaço de tempo que permaneci ao seu lado pude identificar rostos de meia dúzia de deuses nórdicos; frases imensas em hieróglifos que lhe subiam pelas batatas das pernas; símbolos místicos das doze tribos de Israel; arabescos árabes, apaches, maoris e xavantes, além de uma infinidade de outros desenhos enigmáticos que ocupavam as demais zonas disponíveis da epiderme. Enfim: o cara era a amostra viva de um catálogo de tatuador. Ah, sim! Mas, espere: como pude ver isso numa noite gelada, onde se presume que as pessoas em BH se protejam como se na Groenlândia? Ora: aí é que mora o esquisito: o referido catálogo ambulante vestia apenas um short reduzido e uma camisa regata, mínima, além de sandálias havaianas. Troquei olhares cúmplices com a balconista da lanchonete – que notara meu interesse naquela policromia humana – e ela sussurrou discretamente:
- Este cara vem muito aqui. Está sempre meio pelado mesmo, pra mostrar as tatuagens. Se cobrir o corpo com alguma roupa... Perde a graça, né?
Concordei de imediato. E refleti sobre como deve ser complicada a vida de alguém que é obrigado a exibir impávido suas tatuagens nas quatro estações do ano, seja sob geadas, tormentas ou em alguma excursão ao Alasca.
A outra esquisitice com a qual me deparei esta semana também pertence ao universo da moda. Como tantos de minha geração, acho que os jeans – clássicos, five pockets, índigo blue – detêm o posto de descoberta mais importante desde a invenção da pólvora ou as Grandes Navegações. Nos anos 60, jeans eram raros. A gente comprava as calças Lee e Levi’s de contrabandistas amadores – tripulações de companhias aéreas – que os traziam escondidos desde os EUA e nos vendiam a preços exorbitantes.
Estava então este escriba distraidamente numa dessas lojas de consertos de roupas, onde tinha levado meus novos jeans para fazer bainhas. A mocinha, muito solícita, já marcara com alfinetes a barra da calça e agora preenchia o talão para pagamento do serviço. Eis que adentra ao recinto uma senhora afobada, carregando uma sacola de roupas. Interrompendo o trabalho da minha atendente – coisa muito comum no Brasil – ela avançou sobre o balcão, perguntando em voz alta:
- Vocês rasgam jeans, não rasgam?
Pensei ter ouvido mal. Ali não era uma loja de reparos, remendos e outras artes costureiras? Mas ela repetiu:
- Rasgam?
Talão na mão, eu já pensava em ir embora. Porém, a frase intrigante fez-me apurar os ouvidos. Fingi procurar alguma coisa dentro da mochila, estacionando discretamente junto à cliente citada. Que surpresa: a balconista, como se fosse a coisa mais natural do mundo, respondeu de imediato:
- Sim, rasgamos. Como a senhora quer?
Com mil botões, zíperes, agulhas e alinhavos! Não saio daqui sem entender a coisa. Rasgar calças? Que diabo é isso? A mulher abriu a sacola e de lá sacou um jeans novinho, lindo, perfeito, ainda com etiquetas de fábrica. Depois, tirou o celular. Ansiosa, correu os dedos ágeis pela tela, cutucando-a. Eu, fingindo consultar a tabela de preços do estabelecimento, estiquei o pescoço. No celular surgiram fotos detalhadas de jeans rasgados nos joelhos, nas panturrilhas, nas pernas – como se saídos de uma perseguição de cachorro bravo ou de um pulo mal sucedido sobre cerca de arame farpado.
- Quero bem assim, ó: três rasgos no joelho direito, quatro no esquerdo. Dois rasgos nas coxas, mas não muito grandes, tá?
-OK, fica em tantos reais – disse a balconista. – Pra sexta, tá bom?
- Beleza, vou usar numa festa no sábado.
Tá certo: tatuagens generalizadas à prova de geadas e jeans esfarrapados de propósito estão na moda, é muito normal. O problema é comigo. Devo estar envelhecendo e desbotando naturalmente junto com meus jeans.
*Fernando Fabbrini é roteirista, cronista e escritor, com dois livros publicados. Participa de coletâneas literárias no Brasil e na Itália e publica suas crônicas também às quintas-feiras no jornal O TEMPO.
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