terça-feira, 19 de julho de 2016

Haja coração: o remake pelo remake

domtotal.com
O remake mal aplicado nos atazana em outros aspectos da existência.
Tatá Werneck interpreta Fedora em Haja Coração.
Tatá Werneck interpreta Fedora em Haja Coração.

Por Alexis Parrot*

Em tempos de baixa criatividade e baixa audiência, grassa o hábito na nossa televisão de lançar mão de antigos temas e produtos para reacender o interesse do público. Daí a enxurrada de remakes que temos sofrido nos últimos anos.

De estratégia legítima, desde os primórdios da televisão, acabou por banalizar-se; hoje em dia deixou de ser o ás na manga para se tornar apenas um truque barato de mágica de salão.

É o caso de Haja Coração, decalcada da deliciosa Sassaricando, de Silvio de Abreu. Por que refazê-la? Em que medida uma nova incursão pelas desventuras de Aparício Varella nos traria algo de novidade ou que pudesse superar a primeira versão? O que vemos no ar não consegue responder a essa pergunta - mesmo com as performances interessantes de Alexandre Borges e Tatá Werneck.

Por outro lado, perdem de lavada na comparação a neo Tancinha e o atualizado Leonardo Raposo. A cada novo capítulo só conseguimos suspirar com a lembrança de Claudia Raia e Diogo Vilela. Como no conto de Dickens, a memória dos antigos intérpretes vivendo esses personagens, rondam o set de gravações da novela como se fossem o fantasma do natal passado - para lembrar a todos que já houve dias melhores.  

Provavelmente a rainha dessa terra perigosa e inóspita do remake tenha sido Ivani Ribeiro. Velha de guerra da dramaturgia do rádio e da tv brasileira, sabia como ninguém usar a ideia da atualização a favor da própria obra. Primeiro porque escolhia novelas que ela mesma tinha feito - já conhecia como ninguém tramas e personagens, sabia o que havia funcionado e o que poderia ser deixado de lado; qual personagem poderia crescer e se valeria a pena seguir pelos mesmos caminhos originais ou apostar no desbravamento de novos.

Seguindo esse cânone, Ivani Ribeiro foi sucesso no original e no replay com A Viagem e Mulheres de Areia. O mesmo ponto de partida, a mesma autora - porém, trabalhando com temas universais (o espiritualismo em A Viagem e a ideia do "duplo" em Mulheres de Areia) e reesculpidos com maestria para aquele momento em que iriam novamente ao ar. 

Se não for assim, o simples remake pelo remake não faz o menor sentido, como é o caso de Haja Coração.

E o remake mal aplicado nos atazana em outros aspectos da existência. A emenda constitucional que passou a permitir a reeleição de ocupantes de cargos do executivo pode ser considerado um simulacro dessa cultura do remake dentro da política brasileira.

Um verdadeiro escândalo de compra de votos no Congresso Nacional à época - assunto que segue até hoje sem uma investigação pelo nosso bravo Ministério Público, apesar dos incontáveis indícios que já vieram à tona comprovando a operação - propiciou um remake do mandato do presidente de então, Fernando Henrique Cardoso.

E, como a vida imita a arte, o remake, não raro, deixa a desejar. Assim foi com o segundo mandato do tucano e assim está sendo com Dilma.

O único a escapar do que poderíamos chamar de "maldição do remake" foi Lula que, por vários  motivos de conjuntura global e do Brasil (porém, não excluída aí sua habilidade política ímpar), conseguiu navegar pelo segundo mandato em céu de brigadeiro, deixar o cargo com a popularidade nas alturas e eleger sua sucessora. Além do remake, ainda conseguiu emplacar um spin-off!

Se faltam ideias, seria uma boa prática se os núcleos de teledramaturgia das emissoras voltassem os olhares para a pujante produção literária brasileira recente - ao invés de se resumirem apenas à auto referência ou à Bíblia. Autores brasileiros contemporâneos como Luiz Ruffato, Cristóvão Tezza e Luiz Vilela, por exemplo, apresentam em sua bibliografia obras que dariam ótimos folhetins. Adaptá-los resultaria em novelas que dariam conta de discutir nossa realidade e os percalços pelos quais o país passa - uma possibilidade de, finalmente, nos vermos representados - de maneira crítica e inteligente - nos horários nobres de nossa televisão.

Nessa seara, esperamos ansiosos pela prometida adaptação do romance Dois Irmãos, de Milton Hatoun, que ganhará corpo pelas mãos de Luiz Fernando Carvalho (aparentemente, o único diretor da Globo que tem uma relação próxima e de carinho com a literatura).

O cineasta John Waters (de Pink Flamingos e Hairspray) afirmou certa vez que não entendia o porquê de refilmarem grandes sucessos, clássicos do cinema ou bons filmes. Para ele, o que deveria ser refeito eram os filmes ruins.

*Alexis Parrot é diretor de TV e jornalista. Escreve às terças-feiras sobre televisão para o DOM TOTAL.

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